A indagação tem causado polêmica desde que entrou em vigor, no dia 23 de janeiro de 1998, o novo Código de Trânsito, instituído pela Lei Federal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997.
As contravenções penais dos arts. 32 e 34 do Decreto-lei nº 3.688/41 eram tratadas pela doutrina e jurisprudência majoritárias como infrações penais de perigo abstrato, presumido pelo legislador e que independe, portanto, de prova e verificação no caso concreto. Algumas decisões relativamente recentes passaram a tratar aquelas contravenções como infrações penais cuja configuração dependeria de perigo concreto, comprovação, em cada caso, de que o bem jurídico protegido sofreu perigo direto, iminente, próximo e concretamente aferível. Nesse sentido: STJ, Resp 34.322, 6ª Turma, Relator Ministro Vicente Cernicchiaro, DJU, 2 de agosto de 1993, p. 14.295; JURICRIM Franceschini n. 2.032; JUTACRIM 19/307; RT 435/368.
Em alguns pontos guardando coerência com os novos rumos da jurisprudência citada e atendendo ao princípio da lesividade e aos preceitos do Direito Penal mínimo (no sentido de que a norma penal será aplicada quando houver dano ou pelo menos efetivo e concreto perigo de lesão ao bem jurídico por ela protegido), entrou em vigor o novo Código de Trânsito Brasileiro, que definiu no art. 309 o crime de direção não habilitada de veículo automotor pela via pública, nos seguintes termos: dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano. O legislador repetiu as letras do art. 32 da Lei Contravencional, que dizia apenas dirigir, sem a devida habilitação, veículo na via pública, ou embarcação a motor em águas públicas, de forma mais completa e abrangente, exigindo agora o perigo efetivo de dano.
Assim, como a lei nova, no art. 309 do Código de Trânsito, no que tange à direção não habilitada de veículo automotor pela via pública, regulou por inteiro a matéria tratada pela lei contravencional antiga, no art. 32, e acrescentou a elementar gerando perigo de dano, que implica na exigência de perigo concreto indeterminado (o que prescinde de vítimas identificadas e individualizadas) para que se perfaça o delito de direção não habilitada (art. 309 do CT), não há dúvida de que derrogou ou revogou parcialmente o art. 32 da Lei das Contravenções Penais, que subsiste apenas no tocante à direção não habilitada de embarcação em águas públicas, matéria não abordada pelo novo Código de Trânsito. A disposição contida no art. 2º, parágrafo 1º, da LICC, e as elementares do novo crime autorizam essa conclusão. A doutrina tem se pronunciado nesse sentido (Damásio de Jesus, Crimes de Trânsito, Saraiva, 1998, p. 187; Victor Eduardo Rios Gonçalves, A Derrogação da Contravenção do Art. 32 da LCP, Boletim IBCCrim nº 65, de abril de 1998, pág. 4).
Via de conseqüência, para aqueles que adotam essa orientação, a lei nova implicará em "abolitio criminis" no que concerne aos fatos anteriores à vigência do Código de Trânsito, levando à extinção da punibilidade, por força do princípio constitucional da retroatividade benéfica da lei penal (art. 5º, XL, da Constituição Federal; art. 2º e parágrafo único, e art. 107, III, ambos do Código Penal).
Há também, numa posição intermediária, quem pense que aplica-se à espécie o princípio segundo o qual tempus regit actum, ou seja, as contravenções penais subsistem, considerada a época de sua incidência, e a lei nova, que veio agravar a situação anterior, elevando à categoria de crimes condutas que antes encontravam adequação naquelas contravenções penais, não implicará, por esse motivo, em "abolitio criminis".
Mas há quem entenda que o art. 32 da LCP ainda está em pleno vigor, aplicando-se aos casos residuais de direção não habilitada que não se ajustem ao art. 309 do Código de Trânsito. Para os que comungam dessa corrente, a nova lei não regulou por inteiro a matéria tratada na lei anterior, não há incompatibilidade alguma entre os textos legais e não é lícito interpretar o Código de Trânsito, cuja finalidade foi estabelecer maior rigor no trato dos delitos ao volante, de modo a desconsiderar as contravenções e vislumbrar na lei nova "abolitio criminis" ou supressão da incriminação de fatos anteriores à sua vigência, o que não seria do propósito do legislador.
Esses últimos argumentos têm dado margem a algumas construções interpretativas em que se restringe a própria aplicação da "abolitio criminis", mesmo por parte daqueles que partilham da tese da revogação de uma ou de ambas as contravenções: assim, para alguns, condutas anteriores ao Código de Trânsito, enquadradas no art. 32 ou no art. 34 da LCP, desde que limitadas ao perigo abstrato, seriam passíveis da "abolitio criminis", enquanto aquelas em que presente o perigo concreto de dano já não seriam, pois o perigo concreto indeterminado é elementar do novo crime de direção não habilitada (art. 309) e dos crimes que abrangem condutas antes alcançadas pela contravenção do art. 34 da LCP (embriaguez, racha e velocidade incompatível - arts. 306, 308 e 311). Esse entendimento, que restringe a retroatividade benéfica da lei penal, não subsiste por duas razões: primeiro, porque a "abolitio criminis" não se detém nem mesmo diante da coisa julgada (art. 2º e parágrafo único, do CP); segundo, porque implica em fazer valer, para condutas anteriores ao Código de Trânsito, elementares de tipos penais novos, nele previstos, para que se impeça a retroatividade benéfica da lei penal, o que acaba por acarretar a retroatividade da lei penal em prejuízo do agente, ou seja, a aplicação, a fatos passados, da lei penal mais severa, ao arrepio do art. 5º XL da Constituição Federal.
E no tocante à contravenção penal de direção perigosa de veículo pela via pública (art. 34 da LCP), a dúvida quanto à sua revogação ou não tem sido ainda maior, inclusive entre aqueles que entendem que o art. 32 da LCP foi derrogado, importando o novo Código de Trânsito em "abolitio criminis".
Para Damásio de Jesus, nas outras hipóteses de direção perigosa de veículo automotor, não abrangidas pelos artigos 306, 308, 309 e 311 do Código de Trânsito, "...subsiste o art. 34 da LCP" (Crimes de Trânsito, Saraiva, 1998, pág. 207). No mesmo sentido, Fernando Y. Fukassawa (Crimes de Trânsito, Oliveira Mendes, 1998, pág. 167).
Respeitadas as posições em contrário, a nosso ver essa situação de dúvida não subsiste e é lícita a conclusão de que a nova lei importa em derrogação de ambas as figuras contravencionais, pelos seguintes motivos:
Foram previstos no Código de Trânsito três delitos cujas condutas típicas, antes, encontravam adequação na contravenção de direção perigosa de veículo na via pública: embriaguez ao volante (art. 306), competição não autorizada (art. 308) e velocidade incompatível ou excessiva (art. 311).
Outras condutas ao volante que anteriormente implicavam na contravenção do art. 34 não foram previstas como crimes na nova lei, como por exemplo: avançar sucessivos sinais vermelhos, transitar pela contramão, empreender manobras audaciosas e de exibicionismo ao volante, como derrapagens propositadas ou os denominados "cavalos de pau" etc.
A omissão, somada à ausência de revogação expressa das contravenções pelo legislador, tem levado alguns a sustentar que a contravenção de direção perigosa de veículo pela via pública continua em vigor.
Inclusive entre aqueles que sustentam que houve derrogação do art. 32, há quem entenda que o art. 34 da LCP subsiste para alcançar condutas não previstas na nova lei (cf. Damásio de Jesus, op. cit., p. 207).
Pensamos, contudo, que a conclusão quanto à derrogação do art. 32 da LCP, por ter a lei nova regulado por inteiro a matéria, estende-se, também, à contravenção do art. 34 da LCP (dirigir veículo na via pública, ou embarcação em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia), com as mesmas conseqüências. A contravenção, do mesmo modo, subsistirá para os casos de pilotagem perigosa de embarcação em águas públicas, matéria evidentemente não abordada pela lei nova.
O art. 161 do Código de Trânsito define como infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código, da Legislação Complementar ou das resoluções do CONTRAN, sendo o infrator sujeito às penalidades e medidas administrativas indicadas em cada artigo, além das punições previstas no Capítulo XIX. Por legislação complementar, há de se entender obviamente toda aquela que venha complementar, regular e aclarar o conteúdo do novo Código de Trânsito.
Inegável que o legislador pretendeu, com efeito, regular por inteiro a matéria no âmbito administrativo e penal. Além dos crimes de trânsito (arts. 302 a 312), previu exaustivo rol de infrações de ordem administrativa (arts. 161 a 255), muitas punidas com multa, suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo, e nas quais se encontrarão, seguramente, todas ou quase todas as condutas imagináveis, e que possam importar em direção perigosa de veículo pela via pública (e se amoldavam ao antigo art. 34 da LCP) e eventualmente não se ajustem aos crimes de embriaguez, racha ou velocidade incompatível (art. 306, 308 e 311).
A contravenção do art. 34 da LCP, punida com prisão simples de quinze dias a três meses, ou multa, era sancionada, via de regra, na esmagadora maioria dos casos, com a mera pena pecuniária, que já não pode mais ser convertida em prisão em face da Lei nº 9628/96, não obsta o "sursis" (art. 77, § 1º, do CP), a transação penal prevista no art. 76 da Lei nº 9099/95, e nem tampouco é considerada, por parte da jurisprudência, para efeito de gerar reincidência. Em termos de resultado punitivo, tornou-se pouco diante das sanções previstas para muitas das infrações administrativas. Igual situação se tem diante da contravenção do art. 32 da LCP, que aliás não prevê punição nem mesmo a título de prisão simples, limitando-se a sanção penal exclusivamente à multa. Tais constatações enfraquecem a idéia de que a sociedade estará melhor protegida pela incidência das contravenções em pauta. Com a instituição da transação em nosso ordenamento jurídico-penal (arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95), não tem o significado de outrora, nesses casos, falar nos princípios da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal, inegavelmente mitigados pela justiça consensual que se estabeleceu, a despeito de ainda válidos. Por igual razão, também já não nos parece de tanta eficácia a menção ao significado, efeitos, reflexos e conseqüências efetivas do processo penal em casos tais, a fim de que se sustente a vigência daquelas contravenções penais.
Não convêm à consciência jurídica e às exigências de precisão e certeza científicas que devem nortear a aplicação do Direito Penal objetivo, no que concerne à adequação da conduta à norma penal incriminadora, interpretações tão distintas sobre uma mesma conduta e matéria: uns entendendo que dirigir sem habilitação ora implica na contravenção do art. 32, ora no crime de trânsito do art. 309, se houver, respectivamente, perigo abstrato ou concreto; outros entendendo que dirigir bêbado, sem comprometer a segurança viária, com mero perigo abstrato, tipificará, ainda, a contravenção do art. 34, enquanto o dirigir bêbado, somado à quebra de normas de tráfego, levará ao crime do art. 306. A discrepância agravará as falhas e a tendência assistemática do Código de Trânsito em algumas de suas disposições. Trará desaconselhável insegurança em matéria criminal.
Assim, respeitando posições em contrário, nos filiamos à tese de que o novo Código de Trânsito derrogou tacitamente não somente a contravenção do art. 32 da LCP, como também a do art. 34 da LCP, e importará em "abolitio criminis" em relação a ambas as figuras típicas. Os casos de quebra da segurança viária que não encontrarem adequação nos arts. 306, 308 e 311 do Código de Trânsito importarão, por certo, em infrações administrativas (arts. 161 a 255 do Código de Trânsito).
Se o legislador tivesse revogado expressamente as contravenções penais em tela, a controvérsia por certo não existiria. Vislumbrar a revogação tácita ou presumida da lei importa em tema que sempre ensejou controvérsia, dúvida e resistência.
A interpretação literal ou gramatical é um dos menos seguros e mais pobres métodos de interpretação da lei. Inclusive no propósito de se vislumbrar a revogação tácita de uma lei por outra. Torna-se, contudo, mais fácil percebê-la e aceitá-la pela interpretação sistemática da lei: analisando-se conjuntamente as disposições dos arts. 32 e 34 da LCP, a estrutura do Código de Trânsito, o disposto no art. 161, as infrações administrativas previstas nos arts. 161 a 255 e o capítulo dos crimes de trânsito (arts. 302 a 312).
Dessa interpretação decorre a conclusão de que a vontade do legislador, no novo Código de Trânsito, foi regular a matéria administrativa e penal por inteiro: 1º - trouxe tipos penais próprios de homicídio culposo e lesão corporal culposa (arts. 302 e 303), afastando a incidência do art. 121, parágrafos 3º e 4º, e 129, parágrafos 6º e 7º, do Código Penal; 2º - trouxe a omissão de socorro de trânsito (art. 304), que afasta a incidência do crime de omissão de socorro do Código Penal (art. 135), pelo menos quando o omitente for o condutor do veículo; 3º - definiu o crime de inovação artificiosa de trânsito (art. 312), que afasta a aplicação do crime do art. 347 do Código Penal (fraude processual), nos casos de acidente de trânsito em que houver lesão corporal ou morte; 4º - trouxe tipos penais que abrangem condutas que antes se amoldavam aos arts. 32 e 34 da LCP, que são os crimes de embriaguez ao volante (art. 306), racha (art. 308), direção não habilitada (art. 309) e velocidade incompatível (art. 311); 5º - previu até mesmo conduta típica que antes implicava em co-autoria ou participação no art. 32 da LCP (crime de permissão, entrega ou confiança indevidas da direção - art. 310); 6º - definiu o delito de violação da suspensão ou proibição do direito de dirigir decretadas com fundamento no Código de Trânsito (art. 307), afastando, com isso, a incidência dos delitos de desobediência e descumprimento de decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito (arts. 330 e 359 do CP); 7º - previu agravantes genéricas da pena nos crimes de trânsito (art. 298) e agravantes especiais no tocante ao homicídio e lesão corporal culposos de trânsito (arts. 302 e 303); 8º - definiu, ainda, infração de trânsito como a violação a preceito de ordem administrativa ou criminal previsto neste Código (art. 161).
É nítido, portanto, o propósito do legislador de abranger toda a matéria não só no âmbito administrativo, como em seus aspectos penais, ressalvada a aplicação de normas gerais do CP, do CPP e da Lei dos Juizados Especiais Criminais, no que couber (art. 291 e seu parágrafo único, do Código de Trânsito).
Um outro princípio basilar em tema de aplicação da lei no tempo há de ser considerado: o de que a lei nova, mais recente, em tese presume-se mais adequada ao seu tempo e às exigências atuais em relação à lei antiga. Mesmo porque a incompatibilidade (princípio fundamental na avaliação da revogação tácita da lei) não decorre somente do explícito e incontornável conflito entre os textos legais, mas "...pode ser o resultado da normação geral instituída em face do que antes existia: quando a lei nova passa a regular inteiramente a matéria versada na lei anterior, todas as disposições desta deixam de existir, vindo a lei revogadora substituir inteiramente a antiga..." (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. I, 5ª ed., Forense, 1980, p. 123).
Pensamos que o fato de o novo Código de Trânsito ter sido em algumas disposições penais atécnico, assistemático, impreciso, e talvez não tão abrangente como deveria ter sido, não deve dar margem a essa aplicação mista e simultânea de leis diversas sobre uma mesma matéria, gerando imprecisão e maior insegurança ainda em matéria penal, além da já trazida por algumas leis. Não devemos comungar dos mesmos pecados do legislador: ausência de técnica, de rigor científico e desprezo à idéia de que o Direito é a um só tempo ciência e sistema, perspectiva segundo a qual há de ser visto, elaborado e sobretudo aplicado e interpretado.
Com a palavra, as decisões de nossos Tribunais. texto publicado pelo promotor público Fernando
Célio de Brito promotor de justiça em Barretos S.P postado por Rene extraido do site Jus Navigand
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