quarta-feira, 2 de junho de 2010

É justa a Justiça?

As vezes as histórias erram o fim da História, mas ela, a História, não erra. Ao se despedir, não diz adeus, diz até logo.
Quero compartilhar algumas perguntas, moscas que zumbem na minha cabeça. É justa a justiça? Está parada sobre seus pés a justiça do mundo, á revelia? O sapatista do Iraque, aquele que jogou os sapatos contra Bush, foi condenado a 3 anos de prisão, mas não merecia uma condecoração? Quem é terrorista? O sapateiro ou o sapateado? Não é culpado de terrorismo o serial killer que, mentindo, inventou a guerra do Iraque, assassinou um povo e legalizou a tortura e mandou aplicá-la?
São culpados os plantadores de Atenco, no México; os indígenas mapuches do Chile, os kekchiés da Guatemala e os sem-terra do Brasil, todos acusados de terrorismo por defender o direito de possuir a terra? Se a terra é sagrada, ainda que a lei não o diga, não são sagrados também os que a defendem?
Segundo a revista Foreign Policy, a Somália é o lugar mais perigoso do mundo. Porém, quem são os piratas? Os mortos de fome que assaltam os barcos ou os especuladores da Wall Street, que há anos assaltam o mundo e agora recebem multimilionárias recompensas por seus roubos?
Porque o mundo premia a quem não o valoriza?
Porque a justiça é cega somente de um olho? Wal Mart, a empresa mais poderosa de todas, proíbe os sindicatos. A McDonald’s também. Porque essas empresas violam direitos, com delinquente impunidade? Será porque no mundo do nosso tempo, o trabalho vale menos que lixo e valem menos ainda os direitos dos trabalhadores?
Quem são os justos e quem são os injustos? Se a justiça internacional existe realmente, porque ela nunca julga os poderosos? Porque não vão presos os autores das mais ferozes carnificinas? Será porque são eles quem têem as chaves dos cárceres? Porque são intocáveis as cinco potências quem têm direito de veto nas Nações Unidas: Esse direito tem origem divina? Velam pela paz dos que fazem negócios com as guerras? É justo que a paz mundial esteja nas mãos das cinco potências que são as principais produtoras de armas? Sem depreciar os narcotraficantes, não é este também um caso de Crime Organizado? Mas não pedem punição contra os mestres do mundo, o grito de quem procura por toda a parte a pena de morte. Mais: o clamor clama contra os assassinos que usam facas e não contra aqueles que utilizam mísseis.
E uma pergunta: já que estes justiceiros estão loucos de vontade de matar, porque não exigem a pena de morte contra a injustiça social? É justo um mundo que a cada minuto destina três milhões de dólares em despesas militares, ao passo que morrem a cada minuto quinze crianças por fome ou doença curável? Contra quem se arma, até os dentes, a chamada comunidade internacional? Contra a pobreza ou contra os pobres?
Porque é que os fervorosos da pena de morte não exigem a pena de morte contra os valores da sociedade de consumo, que diariamente atentam contra a segurança pública? Ou não evitam os crimes de bombardeio da publicidade que atordoa milhões e milhões de jovens desempregados ou mal pagos, repetindo dia e noite que se deve ter um carro, ter sapatos de marca, ter, ter e quem não tem, não é?
E porque não se implanta a pena de morte contra a morte? O mundo está organizado ao serviço da morte. Ou não fabrica a morte a indústria militar, que devora a maior parte dos nossos recursos e muito da nossa energia? Os donos do mundo só condenam a violência quando outros a exercem. E se este monopólio da violência se traduz em um fato inexplicável para os extraterrestres, é igualmente insuportável para os terrestres que ainda queremos, contra todas as evidências, sobreviver: os humanos somos os únicos animais especializados em extermínio mútuo, e temos desenvolvido uma tecnologia de destruição que está aniquilando, rapidamente, o planeta e todos os seus habitantes.
Essa tecnologia se alimenta do medo. É o medo quem fabrica os inimigos que justificam as forças militares e policiais. E se teimam introduzir a pena de morte; que tal se condenarmos à morte o medo? Não seria salutar acabar com esta ditadura universal dos assustadores profissionais? Os semeadores de pânico, que nos condenam à solidão, que nos proíbem a solidariedade: salve-se quem puder e cada um por si; afastem-se uns dos outros, o outro é sempre um perigo que te cerca; este de roubará, aquele te violará; esse bebê está escondendo uma bomba muçulmana e aquela mulher que você vê, aquela vizinha de aspecto inocente, ela vai te contagiar com a gripe suína.
No mundo de cabeça para baixo, faz-nos medo até mesmo os mais elementares atos de justiça e senso comum. Quando o Presidente Evo Morales iniciou a refundação da Bolívia, para que este país de maioria indígena deixasse de ter vergonha de olhar-se no espelho, provocou pânico. Este desafio era catastrófico do ponto de vista da ordem racista tradicional, que dizia ser a única forma possível: Evo era e traria consigo o caos e a violência, e por sua culpa a unidade nacional iria explodir, ser quebrada em pedaços. E quando Correa, o Presidente do Equador, anunciou que se recusaria a pagar as dívidas ilegítimas do país, a notícia causou terror no mundo financeiro e o Equador foi ameaçado com terríveis castigos, por estar dando mau exemplo. Se as ditaduras militares e os políticos ladrões foram sempre mimado pela banca internacional, será que temos que nos acostumar a aceitar como fatalidade do destino que o povo pague o pau que o golpeia e a ganância que o rouba?
Mas, será que tem sido divorciados para sempre o senso comum e a justiça? Não nasceram para caminhar juntos, bem pregados, o senso comum e a justiça?
Não é de senso comum, e também de justiça, que o slogan das feministas, que dizem que se nós, os machos, ficássemos grávidos, o aborto seria legalizado? Por que não legalizar o direito ao aborto? Será porque ele então deixaria de ser o privilégio das mulheres que podem pagá-lo e dos médicos que podem cobrá-lo? O mesmo acontece com outro escandaloso caso de negação de justiça e do senso comum: por que não se legalizar a droga? Acaso ela não é, como o aborto, uma questão de saúde pública? E o país que mais tem drogados, que autoridade moral para condenar aqueles que abastecem sua demanda? E porque os grandes meios de comunicação, que consagram a guerra contra o flagelo da droga, nunca dizem que provém do Afeganistão quase toda a heroína consumida no mundo? Quem manda no Afeganistão? Não é esse um país militarmente ocupado pelo messiânica país que se atribui a missão de salvar a todos?
Porque não legalizar as drogas uma vez? Não será porque as drogas são o melhor pretexto para as invasões militares, e servem para sustentar a ganância dos grandes bancos que a noite trabalham como lavanderias? Agora o mundo está triste porque se vendeu menos automóveis. Uma das consequências da crise mundial é a queda da próspera indústria de automóvel. Se tivéssemos algum resto de senso comum, e algum sentido de justiça, não teríamos de celebrar essa boa notícia? Ou será que a diminuição da venda de automóveis não é boa notícia, do ponto de vista da natureza, que estará um pouquinho menos envenenada, e dos peões, que vão morrer um pouco menos?
De acordo com Lewis Carroll, a Rainha explicou à Alice como funciona a justiça no país das maravilhas: - Aí o tem - disse a Rainha - Está encerrado no cárcere, cumprindo sua condenação, mas o julgamento não começará até à próxima quarta-feira.É claro, o crime será cometido no final.
Em El Salvador, o arcebispo Dom Oscar Arnulfo Romero comprovou que a justiça, como a serpente, só morde os descalços. Ele morreu a tiros, por denunciar que em seu país os descalços nasciam já condenados, pelo delito de terem nascidos. O resultado das recentes eleições em El Salvador, não é de alguma maneira um tributo? Uma homenagem ao arcebispo Romero e os milhares que, como ele, morreram lutando por uma justiça justa no reino da injustiça.
As vezes as histórias erram o fim da História, mas ela, a História, não erra. Ao se despedir, não diz adeus, diz até logo.Texto de Eduardo Galeano extraido de ESTADO ANARQUISTA postado por Rene

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