Vida difícil de bolivianos vai muito além da exploração no trabalho
Condições pesadas impostas nas oficinas de costura são apenas uma das faces do cotidiano severo enfrentado pelos migrantes bolivianos que deixaram a sua patria-mãe em busca de uma vida melhor em território brasileiro
Por Beatriz Camargo e Maurício Hashizume
Bolivianos trabalhando sem garantias sociais e recebendo menos que outros trabalhadores. Na região central da cidade de São Paulo, onde proliferam oficinas de costura, esta descrição não seria uma novidade. Não é de hoje que muitos migrantes deixam a Bolívia para enfrentar a dura rotina no comando de máquinas de costura confinadas em cômodos acanhados nos bairros do Bom Retiro, do Pari, da Mooca, do Brás, do Canindé...
Nesta terça-feira (18), data em que se comemora o Dia Internacional do Imigrante, o Ministério Público do Trabalho (MPT) de Santa Catarina anunciou a assinatura de um termo de compromisso com a empresa KB Bordados, depois da denúncia de que trabalhadores bolivianos estavam sendo explorados e discriminados na confecção da região de Indaial (SC).
Com base em artigos da Convenção 143 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Declaração Sócio-Laboral do Mercosul, o procurador Marcelo D´Ambroso elaborou as bases do termo que visa garantir tratamento igual para trabalhadores brasileiros e estrangeiros, garantindo os direitos dos bolivianos. Se o acordo não for cumprido, a empresa terá de pagar multa de R$ 300 mil por infração e por trabalhador encontrado em situação irregular, reversível ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD).
"Os bolivianos estão sendo empregados também na região de produção têxtil do Vale do Itajaí. Isso pode ser uma tendência e precisa ser investigado", relata Marcelo, que busca diferenciar bem casos de estrangeiros sem documentos no Brasil - que seria uma questão da Polícia Federal (PF) - da situação de quem vem ao Brasil e trabalha regularmente. "Se ela vem ao Brasil e é vítima, a maior falta é da empresa, que deveria dar suporte", avalia.
O acompanhamento cotidiano da vida dessas pessoas no Brasil mostra, porém, que a vida difícil dos bolivianos vai muito além do trabalho. Filha de pai e mãe que vieram da Bolívia nos anos 60, a advogada Ruth Camacho atende gente dos países vizinhos há anos na Igreja Nossa Senhora da Paz, no bairro da Liberdade, junto ao Centro Pastoral do Migrante (CPM). As orientações se dividem basicamente em três assuntos: problemas com documentação, questões relacionadas a trabalho (muitos casos de não recebimento pelo trabalho nas oficinas de costura) e casos de violência doméstica.
"No Brasil, a mulher está sendo orientada a buscar seus direitos pela Lei Maria da Penha [que facilita denúncias, dá maior proteção a vítimas e aumenta a punição dos agressores] e a questão já é difícil. Imagine a situação da mulher que não tem documento, não tem nada, e está em situação de trabalho irregular", relata Ruth. A violência ocorre com mulheres dentro de casa e chega até as crianças filhas de migrantes, em especial no ambiente escolar. "Muito embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diga que nenhuma criança pode ficar fora da escola, a falta de informação faz com que a escola não aceite as crianças. Muitas se formam e não recebem diploma".
Outros dois casos colhidos em entrevistas por Juliana Lago, da Associação Humanista, que vem organizando debates sobre a situação dos bolivianos no Brasil, mostram que a questão extravasa a exploração no trabalho. Uma mãe de família boliviana que trabalhou mais de um ano nas confecções paulistanas disse que decidiu deixar o Brasil porque seu filho adolescente apanhava todos os dias no colégio. Juliana também ouviu o relato de um médico que atendeu bolivianos que recebem o primeiro atendimento no posto de saúde, mas desistem de fazer os devidos exames porque ficam com medo de fornecer dados básicos (como o nome e endereço) e correr o risco de deportação.
Todo esse conjunto de problemas está relacionado principalmente com a questão da documentação, primeiro passo para a garantia de direitos básicos. "Sem documento, o migrante não consegue fazer nada: nem preservar direitos como trabalhador, nem como cidadão", destaca a advogada Ruth. Na entrada, são concedidos vistos de turista com 90 dias de validade, que podem ser prorrogado por mais 90 dias. Vencido esse prazo, a situação se torna irregular. Há também aqueles que entram sem nenhum tipo de documento ou visto.
Em 2005 foi promulgado o Acordo entre Brasil e Bolívia sobre "Facilitação para o Ingresso e Trânsito de seus Nacionais em seus Territórios", que estabelece a concessão de vistos de permanência aos bolivianos que chegaram ao Brasil até agosto de 2005. "Em vez de vistos permanentes, estão sendo concedidos vistos provisórios de dois anos [que precisariam ser renovados mais uma vez por outra autorização provisória de mais dois anos para só então serem substituídos por vistos permanentes]. Os primeiros migrantes que conseguiram esses vistos já estão prorrogando por mais dois anos", conta Ruth.
As cobranças de taxas e de multas - que podem chegar a R$ 848,00 - quando da renovação são outro problema citado pela advogada. "Para quem ganha centavos por peça trabalhada, pagar isso tudo é muito difícil", analisa Ruth. E além das taxas, quem pede visto precisa de uma série de documentos (certidão de nascimento/casamento, antecedentes criminais, etc.) e de comprovantes de remuneração. Muitos bolivianos trabalham em confecções ou são autônomos e não têm como comprovar renda. A PF exige holerite ou um atestado concedido por contadores. "Muitos bolivianos estão sendo vítimas de golpes de contadores que estão fazendo comprovantes falsos".
A necessidade de uma regularização mais ampla é prioridade máxima, de acordo com quem atende estrangeiros que vivem no Brasil. "Há cerca de 100 mil bolivianos em São Paulo, dos quais cerca de 20 mil estão se regularizando pelo Acordo Brasil-Bolívia. O numero é alto, mas ainda é pouca gente. Ou seja, o acordo propõe a facilitação dessa regularização, mas isso não está ocorrendo", coloca Ruth. "É uma pequena anistia cheia de condicionantes", sintetiza Roberval Freire, do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM).O acordo para facilitação de trânsito não implicou em melhorias diretas das condições de vida desse grupo, admite Paulo Sérgio de Almeida, coordenador-geral do Conselho Nacional de Imigração (CNIg). "As formas de produção continuam as mesmas: oficinas clandestinas, jornadas longas e situação fragilizada", salienta Paulo Sérgio, do CNIg, ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "Por isso, o Ministério tomou a iniciativa de criar um grupo de trabalho para analisar e ver o que pode ser feito".O ministro Carlos Lupi assinou portaria que cria o grupo que tem a missão de analisar e apresentar propostas para dar fim aos casos de submissão de estrangeiros a trabalho degradante ou análogo à escravidão no Brasil. O relatório conclusivo está sendo aguardado para o início de abril de 2008.Grupos da sociedade civil - como a Associação Humanista, o Cami e o CPM - e a Organização Internacional para Migração (OIM) planejam a publicação de um "guia do imigrante", com informações sobre direitos e deveres, acesso a serviços relacionados à saúde e formas de procedimento em casos de violência. Também faz parte dos planos a confecção e distribuição de um panfleto específico com o propósito de combater a violência: contra as mulheres no ambiente doméstico, nos locais de trabalho e nas escolas.Notícias relacionadas:Entidades defendem regularização ampla de trabalhadores imigrantesKantuta é um pedaço de Bolívia na capital paulistaMPT texto extraido do Reporter Brasil agencia de noticias postado por Rene
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