A TIRANIA DAS BOAS INTENÇÕES
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
Meu amigo e colega de Unicamp, o físico Rogério Cerqueira Leite disparou, na
Folha de S.Paulo, um petardo contra os métodos e protagonismos de Sergio Moro.
Moro retrucou com uma carta ao Painel do Leitor. Lamentou que o jornal tivesse
concedido espaço para a publicação do artigo: “Sem qualquer base empírica (sic), o
autor desfila estereótipos e rancor contra os trabalhos judiciais na assim
denominada Operação Lava Jato, realizando equiparações com fanático religioso e
chegando a sugerir atos de violência contra o ora magistrado”. Moro prossegue:
“A publicação de opiniões panfletário-partidárias que veiculam somente
preconceito e rancor, sem qualquer base factual deveria ser evitada…”
No Brasil da conflagração política, juízes, promotores e delegados – burocracias
não eleitas e autodenominadas meritocráticas – reagem às insinuações de
“partidarismo” e açodamento nas investigações com atitudes que lembram as
conclamações virtuosas dos jovens florentinos mobilizados pelas
arengas de Savonarola.
Invocar a própria virtude, honestidade ou bons propósitos para contestar a
impessoalidade e o “formalismo” da lei é desastroso para a sociedade. Há quem
apontasse, como Montesquieu, insanidade na substituição da força da lei pela
presunção de virtude autoalegada.
Nas sociedades modernas, as burocracias envolvidas na prestação jurisdicional
gozam das prerrogativas de independência funcional, irredutibilidade dos
vencimentos, vitaliciedade, (que poderia ser suspensa no caso de falta grave) e
direito a uma aposentadoria especial.
Essas prerrogativas não concedem um privilégio à pessoa do juiz, mas, sim,
pretendem dar ao cidadão a certeza de que será julgado por um magistrado capaz
de resistir ao poder econômico e político, aos arreganhos das maiorias
circunstanciais e autoritárias ou às campanhas midiáticas empenhadas em
atemorizar e influenciar a prestação jurisdicional.
Por isso, o juiz só serve ao “povo” enquanto intérprete da lei e servo da
hierarquia do sistema de prestação jurisdicional. Tanto os de cima quanto
os de baixo devem obedecer aos trâmites e instâncias do processo
legal. A democracia não sobrevive quando os procedimentos formais
são substituídos pela opinião fulminante que culmina na
desmoralização recíproca das instâncias jurisdicionais e dos demais
poderes republicanos.
As participações dos policiais, magistrados e promotores no
bate-boca sobre a Operação Lava Jato deixam muita gente de cabelo
em pé. Algumas manifestações colidem frontalmente com o
princípio liberal e democrático que garante ao cidadão, rico ou
pobre, um julgamento fundado na argumentação racional das partes
e na livre formação da convicção do intérprete da lei.
A incompreensão dos fundamentos de suas funções e prerrogativas
por parte dos funcionários do Estado escancara as portas para
a horda de justiceiros que pretendem violar as garantias
individuais dos ricos em nome do desamparo da maioria pobre,
esta diariamente submetida ao justiçamento praticado pelos esbirros do abuso.
Trata-se de uma forma estranha e peculiar de se promover a
igualdade entre os cidadãos: entregar todos, sem distinção de
classe, raça ou gênero, à brutalidade e ao arbítrio dos beleguins.
O socialismo dos tolos dá lugar ao socialismo dos tiras.
As ações de autoridades seduzidas pelos frêmitos e cintilações
da “sociedade do espetáculo” açulam o imaginário da
população que delira com o festival de detenções, com a
prodigalidade na concessão de prisões temporárias, para, logo
mais, esquecer tudo e se emocionar com o próximo capítulo da
interminável novela “Chutando a Porta” (subtítulo:
“Desde Que Não Seja a Minha”).
Imaginei – santa ingenuidade – que as batalhas do século XX,
além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem
, finalmente, estendido os direitos civis e políticos, conquistas
das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos.
Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente
subversiva, ainda que não revolucionária: a construção da
República dos Mais Desiguais. Uma novidade política
engendrada nos porões da inventividade contemporânea
regime em que as garantias republicanas recuam diante dos
esgares da máquina movida pela “tirania das boas intenções”.
Um sistema em que bons meninos exibem sua retidão moral
para praticar brutalidades em nome da Justiça. O direito e
a eticidade do Estado desaparecem no buraco negro do
moralismo particularista e exibicionista.
A palavra ética frequenta certos círculos que podem comprometer
sua reputação. Nas mãos dessa gente são estraçalhados
os valores fundados na ética que as sociedades modernas
alegam compartilhar. A ética, diria Hegel, não se
compadece dos arroubos de moralismo narcisista, aquele que
aponta os corruptos, mas descura das raízes da corrupção.
CartaCapital [http://www.cartacapital.com.br/]:21/10/2016.
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Luiz Gonzaga Belluzzo. Economista. É professor.
Consultor editorial de CartaCapital.
http://rogeriocerqueiraleite.com.br/a-tirania-das-boas-intencoes/
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