sábado, 29 de outubro de 2016

BRAZIL

A TIRANIA DAS BOAS INTENÇÕES


Resultado de imagem para FOTO DO JUIZ SERGIO MORO




Por Luiz Gonzaga Belluzzo


Meu amigo e colega de Unicamp, o físico Rogério Cerqueira Leite disparou, na

Folha de S.Paulo, um petardo contra os métodos e protagonismos de Sergio Moro.
 Moro retrucou com uma carta ao Painel do Leitor. Lamentou que o jornal tivesse
 concedido espaço para a publicação do artigo: “Sem qualquer base empírica (sic), o 
autor desfila estereótipos e rancor contra os trabalhos judiciais na assim 
denominada Operação Lava Jato, realizando equiparações com fanático religioso e
 chegando a sugerir atos de violência contra o ora magistrado”. Moro prossegue:
 “A publicação de opiniões panfletário-partidárias que veiculam somente 
preconceito e rancor, sem qualquer base factual deveria ser evitada…”
No Brasil da conflagração política, juízes, promotores e delegados – burocracias 
não eleitas e autodenominadas meritocráticas – reagem às insinuações de 
“partidarismo” e açodamento nas investigações com atitudes que lembram as 
conclamações virtuosas dos jovens florentinos mobilizados pelas
 arengas de Savonarola.
Invocar a própria virtude, honestidade ou bons propósitos para contestar a 
impessoalidade e o “formalismo” da lei é desastroso para a sociedade. Há quem 
apontasse, como Montesquieu, insanidade na substituição da força da lei pela 
presunção de virtude autoalegada.
Nas sociedades modernas, as burocracias envolvidas na prestação jurisdicional
 gozam das prerrogativas de independência funcional, irredutibilidade dos 
vencimentos, vitaliciedade, (que poderia ser suspensa no caso de falta grave) e 
direito a uma aposentadoria especial.
Essas prerrogativas não concedem um privilégio à pessoa do juiz, mas, sim,
 pretendem dar ao cidadão a certeza de que será julgado por um magistrado capaz
 de resistir ao poder econômico e político, aos arreganhos das maiorias
 circunstanciais e autoritárias ou às campanhas midiáticas empenhadas em 
atemorizar e influenciar a prestação jurisdicional.
Por isso, o juiz só serve ao “povo” enquanto intérprete da lei e servo da
 hierarquia do sistema de prestação jurisdicional. Tanto os de cima quanto 
os de baixo devem obedecer aos trâmites e instâncias do processo 
legal. A democracia não sobrevive quando os procedimentos formais
 são substituídos pela opinião fulminante que culmina na
 desmoralização recíproca das instâncias jurisdicionais e dos demais 
poderes republicanos.
As participações dos policiais, magistrados e promotores no 
bate-boca sobre a Operação Lava Jato deixam muita gente de cabelo 
em pé. Algumas manifestações colidem frontalmente com o 
princípio liberal e democrático que garante ao cidadão, rico ou 
pobre, um julgamento fundado na argumentação racional das partes 
e na livre formação da convicção do intérprete da lei.
A incompreensão dos fundamentos de suas funções e prerrogativas 
por parte dos funcionários do Estado escancara as portas para 
a horda de justiceiros que pretendem violar as garantias 
individuais dos ricos em nome do desamparo da maioria pobre, 
esta diariamente submetida ao justiçamento praticado pelos esbirros do abuso.
Trata-se de uma forma estranha e peculiar de se promover a
igualdade entre os cidadãos: entregar todos, sem distinção de 
classe, raça ou gênero, à brutalidade e ao arbítrio dos beleguins.
 O socialismo dos tolos dá lugar ao socialismo dos tiras.
As ações de autoridades seduzidas pelos frêmitos e cintilações 
da “sociedade do espetáculo” açulam o imaginário da
 população que delira com o festival de detenções, com a 
prodigalidade na concessão de prisões temporárias, para, logo
 mais, esquecer tudo e se emocionar com o próximo capítulo da
 interminável novela “Chutando a Porta” (subtítulo:
“Desde Que Não Seja a Minha”).
Imaginei – santa ingenuidade – que as batalhas do século XX,
além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem
, finalmente, estendido os direitos civis e políticos, conquistas
 das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos.
Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente 
subversiva, ainda que não revolucionária: a construção da
 República dos Mais Desiguais. Uma novidade política
 engendrada nos porões da inventividade contemporânea
 regime em que as garantias republicanas recuam diante dos
 esgares da máquina movida pela “tirania das boas intenções”.
Um sistema em que bons meninos exibem sua retidão moral 
para praticar brutalidades em nome da Justiça. O direito e
 a eticidade do Estado desaparecem no buraco negro do
 moralismo particularista e exibicionista.
A palavra ética frequenta certos círculos que podem comprometer
 sua reputação. Nas mãos dessa gente são estraçalhados
 os valores fundados na ética que as sociedades modernas 
alegam compartilhar. A ética, diria Hegel, não se 
compadece dos arroubos de moralismo narcisista, aquele que 
aponta os corruptos, mas descura das raízes da corrupção.
CartaCapital [http://www.cartacapital.com.br/]:21/10/2016.
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Luiz Gonzaga Belluzzo.  Economista. É professor.
 Consultor editorial de CartaCapital.
http://rogeriocerqueiraleite.com.br/a-tirania-das-boas-intencoes/

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