Sentado na proa da voadeira de alumínio, Marcelo Fernandes, abrindo espaço entre mochilas e mantimentos, lembra-se daquele dia. Acordara cedo sob chuva fina, os carregadores exaustos desmontavam acampamento em meio a discussões calorosas. O grupo liderado por Marcelo, começa a descida escorregadia após 6 dias no meio da mata. A conquista do cume, há dois dias, não acalma os nervos exaltados da equipe que se dirige, em meio a desavenças, a “Boca do Tucano”: Entrada da trilha no igarapé do tucano, onde dias antes largaram a canoa para o início da jornada. O corpo minando água, exposto a umidade implacável pedia o fim da caminhada, era a hora tão esperada de entrar no barco e deixar para trás os dias de luta curtindo o sabor da conquista, no entanto algo estava errado, um homem de baixa estatura e traços fortes anuncia que algo não está bem. Com gestos nada amistosos ordena que desçam remando, visto que o motor da canoa já não estava mais ali, até o rio Cauaburís, alguns metros abaixo. Marcelo, entre olhares confusos, prevê o problema. Cercados por cerca de 60 índios em canoas e por terra, armados de arco e flechas e espingardas o grupo é coagido. Pede-se que coloquem todos os equipamentos e provisões em outro barco. Atônitos e silenciosos, todos obedecem as exigências sob o olhar hostil de seus anfitriões. As ordens são claras e as armas servem para dissuadir qualquer idéia de fuga. Os índios descem rapidamente, impulsionados pelos motores, as corredeiras do Cauaburís, carregando as mochilas e todos os mantimentos da equipe, outros somem por trilhas e labirintos cortando a mata. Resta ao grupo remar, sem nenhuma comida, as águas traiçoeiras do rio até chegar a aldeia onde a liderança indígena ainda decidiria o futuro de todos. Um ano e meio após o episódio tormentoso, desembarco em São Gabriel da Cachoeira às margens do Rio Negro, cidade ornamentada por montanhas e pela imensidão da maior floresta tropical do mundo, procuro pelo guia Marcelo que se espreme entre soldados do exército prontos para defender as fronteiras do país. Na sacada do hotel, vislumbrando as corredeiras do Rio Negro junto-me ao grupo para conhecer os detalhes da expedição e meus companheiros: João Deuslene, Geraldo Ozorio Filho, José Augusto Brasil e Ângela Santos que examinam os mapas e estudam a logística da empreitada. O ranger das molas do caminhão marca o início do caminho. Pela empoeirada BR-307 margeávamos pequenas comunidades indígenas, nos 85km de estrada de chão. Partimos de São Gabriel no dia 13/10 rumo ao topo do Brasil. Na carroceria, dividíamos espaço entre as provisões, combustível (cerca de 280litros), mochilas e a canoa de 11 metros: único meio de penetrar nas sinuosas vias fluviais do Parque Nacional. Após cruzar a risca que divide os Hemisférios e passarmos pela inspeção da Funai, encostamos em Ya-mirim. Crianças brincavam à sombra de uma castanheira. A pequena vila encontra-se na Reserva indígena do Balaio região habitada por diferentes etnias entre Tukános, Desána, Yepamashã, Kobéwa, Tuyúka, Pirá-Tapúya, Baníwa, Baré e Tariáno. Vivem basicamente da caça, pesca e agricultura de subsistência. Junta-se a nós Zezinho e o experiente Félix, que já integrara dezenas de expedições pela floresta. Deitamos a pesada canoa nas águas do Ya-mirim(rio pequeno em tupy) e deslizamos, rumo a Nazaré, aldeia Yanomami, onde passaríamos a noite. Assistidos por dezenas de crianças atentas, aportamos no lugarejo e fomos recebidos pelo simpático Matheus, Tuxaua(Cacique Yanomami) da comunidade, e pelo Pajé Manuel, que nos alojou em uma maloca para passarmos a noite. Conhecemos o “Índio” , como era chamado por todos e ironicamente o único que não tinha descendência diretamente indígena, que integraria a partir de agora nosso grupo, ajudando a carregar os mantimentos e a organizar as refeições. Saboreamos uma deliciosa carne de Paca e dormimos ansiosos por seguir nosso destino. Às 6 da manhã, sob um céu sombrio e ameaçador, nos colocamos de pé e após arrumarmos as bagagens retornamos ao rio. A chuva era inevitável e logo descobriríamos que as precipitações de água seriam diárias. Entramos no Ya-Grande e pouco depois navegávamos, sob o comando atento de Índio, as águas traiçoeiras do rio Cauaburis. A navegação por ali é complicada, a água escura esconde as pedras, e segundo Índio, só pode ser transposto por quem o tem mapeado na memória. O problema maior, lembra nosso audaz timoneiro, são os troncos arrastados pela fúria da correnteza e deixados caprichosamente camuflados sob a água turva. Passamos em Maturacá, local do momentâneo cárcere, de Marcelo há um ano e meio atrás com o desavisado grupo que protagonizou o infeliz episódio da viagem citada no começo da reportagem. Nosso guia agora estava munido da autorização da A.Y.R.C.A.(Associação Yanomami do Rio Cauaburís e Afluentes), documento liberado pelo presidente da associação e amplamente debatido com as lideranças indígenas, que questionam os motivos e intenções da expedição. A área fica na Tríplice fronteira (Brasil/Venezuela/Colômbia) e freqüentemente é alvo de exploração clandestina de minérios, garimpo, biopirataria além da eminente proximidade dos vizinhos guerrilheiros das F.A.R.C. O parque nacional do Pico da Neblina foi criado na década de 70, sobre terras Yanomami, que tiveram sua área recentemente demarcada. Com sua cultura milenar, os indígenas lutam bravamente para defender seu espaço sagrado e manter a soberania sobre seu território. Bem recebidos em Maturacá por Roberval que já nos esperava, agregamos mais um ao grupo, José Luis, Yanomami de estatura baixa que embarcou rapidamente. Com sua experiência, conduziu-nos corredeira acima pelo perigoso rio até o Igarapé do Tucano onde fomos surpreendidos subitamente por uma Sucuri que cruzou nossa embarcação em direção ao Cauaburis. Envoltos na escuridão que se aproximava, subimos rapidamente acampamento, tomamos banho no igarapé e fomos dormir com o zunido provocado pelo motor ininterrupto da voadeira, lembrando-nos forçosamente o trajeto percorrido. O grito das araras rompe o silêncio da manhã, é hora de arrumar as bagagens. O amanhecer na floresta nos trás um sentimento insólito de pequenez. A natureza se impõe, suscitando sensações distintas: fascinação, temor, admiração, respeito. Começamos a caminhada em direção ao Bebedouro Velho, local da próxima pernoite, e um barulho de barco que se aproxima desperta curiosidade: “Quem estaria chegando a um lugar como esses?“ O Parque nacional recebe, no máximo, duas expedições por ano. Félix pede silêncio e ratifica. O som não é de um motor e sim de um enxame de abelhas que passa sobre nós. Caminhamos cerca de duas horas até avistarmos um casebre feito de folhas de palmeira, duas mulheres Yanomami rodeadas de crianças trabalham na extração de cipó. Atravessamos uma corredeira de águas transparentes, chamada Cachoeira do Tucano e seguimos por ladeiras sombreadas pela floresta primária, agora sob chuva forte, até o próximo acampamento. Sem as botas úmidas e de pés no chão, o sol mostra a cara num clarão aberto por antigos garimpeiros, e nos ajuda a minimizar aquele que seria nosso pior adversário: a umidade, penetrando nas frestas mais protegidas dos equipamentos zelosamente guardados na mochila. A noite cai entoada por um agradável bate papo ao pé da fogueira. Índio conta seu passado no garimpo, os sonhos de fortuna, as doenças e os companheiros mortos em busca de tempos melhores. Félix relembra com infindáveis história, de quando era cozinheiro do exército, suas inclusões na floresta hostil e as oito malárias que quase o mataram. Recompostos pelo sono, levantamos acampamento e seguimos nosso caminho pela picada na mata. Envoltos no clima úmido, que nos mantinha encharcados, começamos a interminável subida pela selva. O calor beirava o insuportável. A marcha freqüente, só era interrompida para um gole d’água ou pelos terríveis insetos, companheiros de toda a jornada. Pegadas de onça ao longo da trilha anunciava a proximidade do bicho e nos fazia indagar sobre nossa força diante do mundo, sobre o universo e o próprio ser. Chegamos ao Bebedouro Novo por volta das 11:30h depois da hora prevista, a proposta era seguir até a base da montanha, mas o grupo estava cansado e a pernada até o próximo acampamento estava estimada em mais 6 horas em um desnível de 1200m de altitude, estávamos a 845m e a base ficava em 2000m. Decidimos pelo descanso, persuadidos pelo experiente guia, e para a felicidade de todos fomos presenteados com um rio de águas cristalinas, precipitadas em corredeiras formando refrescantes piscinas naturais. O deleite nas águas reergueu a moral da equipe para a seqüência do almejado destino. Entre raízes e troncos retorcidos voltamos a trilha e aos percalços diários. Sabíamos que a trajetória era dura e a subida, o único caminho a seguir. Esbarramos nas pegadas do felino novamente, decidimos caminhar em grupo. Luz do sol nessa trilha é coisa rara e quando a mata se abriu tímida, avistamos imponente e majestosa a face rochosa do Neblina ironicamente aparente. A probabilidade de vê-lo é quase nula, já que o pico faz jus ao nome e se apresenta envolto em sua neblina eterna. O terreno começa a se modificar vagarosamente, o caminho de terra, folhas e lama dá lugar a musgos e liquens, formando um tapete traiçoeiro e escorregadio pelo infindável aclive pedregoso, as árvores altas sedem espaço a vegetação de altitude. Bromélias e orquídeas ornamentam o caminho e mostram as diferentes faces de uma Amazônia pouco conhecida. Os atoleiros são inevitáveis, cada passo é negociado, o objetivo é pisar onde afunda menos, em alguns pontos atola-se até o joelho. Os 40 graus da floresta dá lugar ao clima montanhoso e frio, a chuva castiga. Chegamos ao acampamento base por volta das 13:00h totalizando 5:50 de caminhada, o riacho gelado não encoraja meus intrépidos companheiros, que apesar do banho de gato, não ousam mergulhar na gélida banheira. Acordamos sob um céu azulado e animador, tinha chegado o dia do ataque final. Avistamos o cume decorado por uma rala nuvem pincelada no topo. A repentina visão da montanha sinalizava um bom presságio, insinuante se mostrava mais uma vez para nós. O que leva as pessoas a subir uma montanha? Desde os primórdios, homens buscam o alto sem motivo aparente, somente pela sensação da conquista? Superação da condição humana? Transcendência? O ritual de preparação, o ato da subida, a busca pela imensidão. O amor a montanha naqueles que sentem deixam marcas profundas. Retomamos então a marcha por entre milhares de Bromélias cortantes que dificultam a passagem. Os atoleiros, agora muito mais profundo que no dia anterior, faz com que os tombos sejam contínuos e inevitáveis. Os músculos tensos sentem, a pele marcada pelas folhas cortantes nos lembram porque o Parque Nacional do Pico da Neblina é considerado um dos lugares mais inóspitos e hostis do planeta. A geografia se transforma abruptamente e o jardim jurássico de bromélias e raízes dá lugar ao caminho rochoso, abrasivo e firme. Chegamos a um grande lance de pedras, o auxílio de cordas agora é inevitável, um a um passamos pelos abismos e em uma hora vencemos um desnível de 400m apoiados em cordas podres e corroídas pelo tempo. Todos se afastam e seguem seu ritmo, cada um em seu passo. Momento de introspecção, a viagem se interioriza. O sentimento de subir é íntimo, o silêncio é rompido pela respiração ofegante. O cume se aproxima e quando a conquista é inevitável somos surpreendidos por uma tempestade de chuva e ventos. A bandeira do Brasil grita freneticamente sacudida pelo vento. Em menos de 10 minutos erguemos acampamento, exaustos e castigados pelo frio nos escondemos nas barracas. A chuva pára e inacreditavelmente a cortina cinzenta se abre, a paisagem desnuda nos oferece uma visão ímpar, efêmera. A alegria toma conta do grupo e um grito ecoa pelos vales enquanto as nuvens dançam por entre os abismos. O horizonte se mostra contínuo, distante, unidos pelos olhos humanos. A sensação é indizível, o sentimento é de algo grande demais para ser explicado, definido em palavras. Flutuando o olhar pela neblina agora presente, a paisagem se ofusca e dá lugar as nuvens. Vamos dormir com a lembrança dos poucos minutos que param no tempo e se eternizam na memória. Seria o fim. O objetivo estaria cumprido não fosse, é claro, o caminho de volta. Após dias na mata o cansaço prevalecia. Tínhamos que retornar a São Gabriel riscando o mesmo percurso da vinda. A trilha de volta nos era familiar. Descemos em 2 dias o trajeto que havíamos vencido em 4. As pernas agora acomodadas na voadeira nos cobrava, as botas encharcadas decoravam a proa do barco. A brisa soprava quente, a saudade dos familiares apertava. Por que passar tantos dias de desconforto e até de riscos para atingir o ponto mais alto do Brasil? Acho que a vida nos mantém buscando respostas sobre a inquietude humana, essa ânsia de buscar o encanto e o mistério no desconhecido. A única certeza é que fazemos parte de um todo muito maior, que nunca vamos compreender e que muitas vezes nos afastam das rotinas e da vida cotidiana. De volta ao caminhão enquanto nos dirigíamos à civilização, avistei numa singela igrejinha uma placa que afirmava “Deus é grande”. Veio-me um provérbio da obra de Guimarães Rosa: “Deus é grande, mas o mato é maior”. Veja no mapa: Exibir mapa ampliado |
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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
UMA VIAGEM AO PONTO MAIS ALTO DO BRASIL
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