A grande riqueza e a grande
pobreza são igualmente
patológicas para a sociedade
Ladislau Dowbor é
economista, professor da PUC-SP e consultor de
várias agências da Organização das Nações
Unidas. Seus trabalhos estão disponíveis online,
em regime creative commons. As deformações que
vivemos e as propostas para superá-las podem ser
consultadas em curtos vídeos online desenvolvidos
no quadro do Instituto Paulo Freire.
Objetivo 1 – Acabar com a pobreza em todas
as suas formas, em todos os lugares
Nossos problemas não resultam da falta de recursos
e sim da sua má alocação. O mundo produz anualmente
80 trilhões de dólares de bens e serviços. Divididos por
7,6 bilhões de pessoas, isso representa 3.500 dólares
por mês por família de quatro pessoas. É bem suficiente
. Com um PIB de 6,5 trilhões de reais e uma população
de 208 milhões, o Brasil está precisamente na média
mundial. Uma distribuição mais justa asseguraria
11 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Daria
para todos viverem de maneira digna e confortável.
Reduzir a desigualdade é o principal caminho para
uma sociedade mais decente e mais produtiva. Nosso
problema não é econômico, é político.
A grande riqueza e a grande pobreza são igualmente
patológicas para a sociedade. A pobreza porque é
eticamente e economicamente prejudicial para toda
a sociedade. E a riqueza porque os muito ricos não
sabem parar, transformam poder econômico em poder
político, corroem a democracia. Assegurar a renda
mínima e taxar os excessos são duas facetas do
equilíbrio necessário. Em paraísos fiscais temos
entre 21 trilhões e 32 trilhões de dólares para um
PIB mundial de 73 trilhões (dados de 2012). Resultam
essencialmente de evasão fiscal, lavagem de dinheiro,
corrupção e atividades ilegais como tráfico de armas e
drogas. Os judiciários fazem o quê? Estão a serviço de quem?
O problema central da política é simples: os privilegiados
adquirem progressivamente o poder de aumentar os seus
privilégios. E o processo se agrava até atingir pontos de
ruptura, com violência e tensões generalizadas. A
desigualdade econômica e política – e a inoperância
dos sistemas jurídicos – fazem parte de um mesmo
processo de desequilíbrio social generalizado.
O combate à desigualdade é uma necessidade ética.
Não é concebível que no século XXI tenhamos
manifestações trágicas de pobreza e miséria. O básico
, numa sociedade civilizada, não pode faltar a ninguém,
e muito menos às crianças que não têm nenhuma
responsabilidade pelo caos em que são jogadas. Não é
uma questão de esquerda e direita, e sim de elementar
decência humana. A dimensão ética se apresenta tanto no
sofrimento dos pobres, que não são responsáveis pela sua
pobreza, como na prepotência dos ricos, que vivem de
rentismo improdutivo e da corrupção política.
O combate à desigualdade é também uma necessidade
política. Nenhuma sociedade se governa de maneira
equilibrada e democrática quando sofre com as inevitáveis
tensões e conflitos que a desigualdade gera. Em vez de
construir muros entre nações, de multiplicar condomínios
de luxo como guetos de riqueza nas cidades, temos de
enfrentar a tarefa organizada e sistemática de inclusão
dos pobres. Uma sociedade em conflito social permanente
termina não funcionando para ninguém. Os países menos
desiguais são mais pacíficos e equilibrados. Não se trata
de distribuir armas e sim de equilibrar recursos.
Sai mais barato tirar as famílias da miséria e acabar
com a pobreza do que arcar com as consequências
em termos de doenças, insegurança e baixa produtividade
, além do sofrimento gerado. É bom senso, não é caridade
. Ampliar o bem-estar funciona para todo mundo.
O aumento de renda nas famílias pobres gera melhoria
radical da qualidade de vida e muita felicidade. Um milhão
a mais nas mãos do milionário gera apenas mais poder
para buscar mais milhões. Em termos de utilidade social
e dinamização econômica, o dinheiro é mais produtivo
na base da sociedade.
Hoje 26 bilionários no planeta têm mais patrimônio acumulado
do que 3,8 bilhões de pessoas, a metade mais pobre da população
mundial. Não produziram essa riqueza, mas dela se
apropriaram. Maior desigualdade da história. Milagre da
intermediação financeira, tragédia para o sistema. Em
vez de apenas criticar os ricos, temos de entender os
mecanismos que geram a riqueza improdutiva. Taxar
a riqueza, distribuir para a base da sociedade.
Dinheiro na mão dos pobres gera consumo, o que estimula
produção, investimento e empregos. Dinheiro na mão dos
muito ricos gera apenas especulação financeira, carros
importados e contas no exterior. Rico útil é aquele que
investe, gera emprego, bens e serviços, e paga os seus
impostos. O resto é parasita.
Objetivo 8 – Promover o crescimento econômico
sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno
e produtivo e trabalho decente para todos
O combate à desigualdade é também uma necessidade
econômica. A melhor forma de dinamizar uma economia
é assegurar maior capacidade de consumo na base da
população. A ampliação da demanda de massa, tanto
de bens comprados com a renda auferida como de bens
coletivos acessados graças às políticas sociais públicas,
gratuitas e universais, dinamiza as atividades econômicas
do país, gera empregos, amplia a inclusão produtiva e assegura
o desenvolvimento. Todos os exemplos de sucesso econômico,
desde o New Deal americano na época da grande crise de 1929
até a reconstrução da Europa no pós-guerra com o estado de
bem-estar, estão baseados nesta fórmula simples: organizar
a economia em função do bem-estar generalizado das famílias.
É o que fez o Banco Mundial chamar a década de 2003 a 2013 de
The golden decade of Brazil.
O evidente avanço dos países nórdicos ou do Canadá baseou-se
no amplo consumo popular que dinamiza atividades econômicas,
o que por sua vez amplia as receitas públicas por meio dos impostos,
equilibrando a conta no nível do orçamento. Foi também o caso
da Coreia do Sul, do Japão e da própria China. Enfrentar a
desigualdade constitui a melhor forma de dinamizar a economia.
O emprego se expande, o que realimenta o processo. Recursos
na base da população se transfomam em demanda e dinamização
econômica, recursos no topo geram mais aplicações financeiras,
especulação e estagnação. Combater a desigualdade e promover
o crescimento econômico sustentado fazem parte da mesma
dinâmica. Não é questão de ideologia, e sim de conhecimento
e bom senso sobre o que funciona no plano econômico e social.
O bem-estar das famílias também assegura melhor equilíbrio
ambiental. A renda de bolso que permite comprar produtos
é apenas uma parte da redução da desigualdade. Os países que
funcionam asseguram as dimensões coletivas do bem-estar
, como acesso universal e gratuito a bens públicos, em particular
saúde, educação, cultura e segurança. Dizer que são “gastos”
é absurdo, trata-se de atividades-fim, investimentos nas pessoas.
Esse consumo coletivo não gera problemas ambientais, pelo
contrário. Assegurar rios limpos, ar mais puro nas cidades,
parques para lazer: batalhar a sustentabilidade é batalhar
também pela nossa qualidade de vida. Do consumismo
elitizado gerador de dramas ambientais temos de evoluir
para consumo inteligente e distribuído.
Quando dizemos que temos de promover o desenvolvimento
sustentado e sustentável, temos de pensar no processo decisório
correspondente. Além da divisão dicotômica entre uma direita
que quer privatizar e uma esquerda que quer estatizar, temos de
pensar numa nova articulação inteligente de Estado, empresas
e sociedade civil organizada. Hoje, com as corporações se
apropriando do Estado e as OSCs perseguidas ou sobrevivendo
com migalhas, estamos aprofundando o desastre. Slow-motion
catastrophe, catástrofe em câmara lenta.
Objetivo 9 – Construir infraestruturas resilientes, promover
industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação
Temos como dinamizar as atividades produtivas inclusive nas
regiões mais atrasadas ou desfavorecidas. O avanço das novas
tecnologias, a conectividade planetária, a ampla urbanização
do planeta e o avanço das políticas sociais abrem espaço para
o que as Nações Unidas têm chamado de Global New Deal,
novo pacto global. Em vez de condomínios, muros e controles
para se proteger dos pobres, em vez de gritarias ideológicas
sobre as ameaças dos imigrantes, muito mais inteligente é
promover o desenvolvimento onde há pobreza.
Estamos vivendo uma era explosiva de transformações
tecnológicas. O conhecimento é hoje o principal fator de
produção. O seu uso não reduz o estoque, pelo contrário.
O acesso aberto ao conhecimento tornou-se a grande
avenida para o desenvolvimento. Permite ao mesmo tempo
o acesso e o compartilhamento. São novas lógicas econômicas
no quadro da economia do conhecimento. Em vez atravancar
o conhecimento com patentes, copyrights e royalties temos de
ampliar o acesso aberto às inovações, promovê-las. O
conhecimento é um bem comum. Vejam o estudo de Elinor
Ostrom, Nobel de economia, Understanding knowledge as a
commons. O Chutando a escada de Ha-Joon Chang e tantas
pesquisas demonstram que o atual sistema, em vez de promover
a inovação, trava o seu potencial transformador. É o rentismo tecnológico.
A conectividade é hoje planetária, logo todos terão tablet ou
celular. O principal fator de produção, o conhecimento,
navega nesses meios sem custos, as ondas eletromagnéticas
são da natureza. Formar comunidades de interesse constitui
um grande espaço de sociabilidade e de trocas. São caminhos
colaborativos em expansão. Vejam o estudo de Arun
Sundararajan, Economia compartilhada. Vejam os sistemas
abertos de acesso como o CORE (China Open Resources for
Education) da China, ou o OCW (OpenCourseWare) do MIT
nos EUA. Temos aqui um imenso potencial subutilizado.
A sociedade do conhecimento e a era do acesso abrem espaço
para uma economia colaborativa radicalmente descentralizada.
O conhecimento, sendo imaterial, viaja nas ondas sem custo.
Mais pessoas usarem multiplica oportunidades. É a economia
de custo marginal zero. Compartilhar se torna mais produtivo
do que competir. Vejam o livro de Jeremy Rifkin, A sociedade
de custo marginal zero.
A economia do conhecimento depende menos de uma hierarquia
verticalizada e mais de redes de compartilhamento. A pesquisa
fundamental desenvolvida nas universidades e instituições de
pesquisa, os centros de desenvolvimento de tecnologias aplicada,
os espaços de aplicação final na indústria, na saúde, na educação
– tudo isso depende de um processo colaborativo ágil e aberto, sem
burocracias. Hierarquia vertical, ordens, obediência e competição
tendem a ser substituídas por redes abertas e flexíveis de
colaboração. A nova economia que se expande sente-se mal
dentro da roupa militarizada herdada do século passado.
Todos os dados sobre as 26 famílias mais ricas que dispõem
de um patrimônio maior do que a metade mais pobre da
população mundial, ou sobre 1% que tem mais do que os 99%
seguintes, mostram uma realidade econômica radicalmente
deformada. Mas é importante atentar para a classe burocrática
que sustenta essa ínfima minoria, e que assegura o seu poder
político, militar, jurídico, midiático. É a tropa de choque das elites
, cooptada por altos bônus e salários, os políticos, juízes,
advogados, contadores, economistas, gestores financeiros que
asseguram uma massa de sustento abaixo do topo da pirâmide.
São os gestores da máquina econômica dominante, fiéis guardiães
dos privilégios. Mas o aprofundamento das crises ambientais, s
ociais e econômicas tende a gerar uma nova consciência.
Sabemos o que deve ser feito. O desafio básico do planeta cabe
numa frase. Estamos destruindo o planeta em proveito de uma
minoria inoperante, enquanto os recursos necessários para
assegurar tanto as políticas ambientais como as de redução das
desigualdades são desviados para atividades de especulação
financeira. Os nossos recursos, tanto financeiros como tecnológicos,
devem ser reorientados para assegurar o bem-estar das famílias
e a sustentabilidade. Nosso problema, evidentemente, não é de
falta de recursos, e sim do seu uso inteligente. Em Wall Street,
adultos bem treinados enriquecem com o desvio do dinheiro
para aplicações improdutivas e gritam excitados Greed is Good!!
Trata-se da instituição que maneja o maior volume de recursos
financeiros do planeta.
Acabar com a pobreza, assegurar crescimento e empregos, e
promover a industrialização sustentável pertencem a uma lógica
comum e integrada: democratizar o acesso aos recursos. Em
Paris, governos de quase todo o mundo apoiaram a resolução
de se levantar 100 bilhões de dólares anuais para ajudar a
[enfrentar o drama da mudança climática. Em paraísos fiscais,
fruto de evasão fiscal, corrupção e comércio ilegal, e servindo à
especulação improdutiva, temos entre 200 e 300 vezes mais. Isso
não funciona. Como escreve Joseph Stiglitz, 40 anos de
neoliberalismo demonstraram o seu fracasso. Sim, Stiglitz,
ex-economista chefe de Clinton e do Banco Mundial. Martin
Wolf, economista chefe do Financial Times, resume: o sistema
perdeu a sua legitimidade. Temos, sim, de evoluir para um
novo pacto global se quisermos que os ODS realmente se materializem.
O
combate à desigualdade
é uma necessidade ética. Não é concebível que no século
XXI tenhamos manifestações trágicas de miséria. Estamos
destruindo o planeta em proveito de uma minoria inoperante.
Este artigo integra o dossiê Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável da ONU, que a revista ComCiência publica nesta semana.
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