sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

REPORTAGEM EXTRAIDA DO JORNAL DA UNICAMP

 

A grande riqueza e a grande

 pobreza são igualmente 

patológicas para a sociedade

Autoria
Edição de imagem

Foto: DivulgaçãoLadislau Dowbor é 

economista, professor da PUC-SP e consultor de 

várias agências da Organização das Nações

 Unidas. Seus trabalhos estão disponíveis online,

 em regime creative commons. As deformações que

 vivemos e as propostas para superá-las podem ser

 consultadas em curtos vídeos online desenvolvidos 

no quadro do Instituto Paulo Freire.

Reprodução

 

Objetivo 1 – Acabar com a pobreza em todas

 as suas formas, em todos os lugares

Nossos problemas não resultam da falta de recursos 

e sim da sua má alocação. O mundo produz anualmente

 80 trilhões de dólares de bens e serviços. Divididos por

 7,6 bilhões de pessoas, isso representa 3.500 dólares

 por mês por família de quatro pessoas. É bem suficiente

. Com um PIB de 6,5 trilhões de reais e uma população

 de 208 milhões, o Brasil está precisamente na média

 mundial. Uma distribuição mais justa asseguraria 

11 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Daria

 para todos viverem de maneira digna e confortável.

 Reduzir a desigualdade é o principal caminho para

 uma sociedade mais decente e mais produtiva. Nosso

 problema não é econômico, é político.

A grande riqueza e a grande pobreza são igualmente

 patológicas para a sociedade. A pobreza porque é

 eticamente e economicamente prejudicial para toda

a sociedade. E a riqueza porque os muito ricos não 

sabem parar, transformam poder econômico em poder

 político, corroem a democracia. Assegurar a renda

 mínima e taxar os excessos são duas facetas do

 equilíbrio necessário. Em paraísos fiscais temos 

entre 21 trilhões e 32 trilhões de dólares para um

 PIB mundial de 73 trilhões (dados de 2012). Resultam

 essencialmente de evasão fiscal, lavagem de dinheiro,

 corrupção e atividades ilegais como tráfico de armas e

 drogas. Os judiciários fazem o quê? Estão a serviço de quem?

O problema central da política é simples: os privilegiados 

adquirem progressivamente o poder de aumentar os seus

 privilégios. E o processo se agrava até atingir pontos de

 ruptura, com violência e tensões generalizadas. A

 desigualdade econômica e política – e a inoperância

 dos sistemas jurídicos – fazem parte de um mesmo

 processo de desequilíbrio social generalizado.

O combate à desigualdade é uma necessidade ética. 

Não é concebível que no século XXI tenhamos 

manifestações trágicas de pobreza e miséria. O básico

, numa sociedade civilizada, não pode faltar a ninguém,

 e muito menos às crianças que não têm nenhuma 

responsabilidade pelo caos em que são jogadas. Não é

 uma questão de esquerda e direita, e sim de elementar

 decência humana. A dimensão ética se apresenta tanto no 

sofrimento dos pobres, que não são responsáveis pela sua 

pobreza, como na prepotência dos ricos, que vivem de

 rentismo improdutivo e da corrupção política. 

O combate à desigualdade é também uma necessidade 

política. Nenhuma sociedade se governa de maneira

 equilibrada e democrática quando sofre com as inevitáveis

 tensões e conflitos que a desigualdade gera. Em vez de

 construir muros entre nações, de multiplicar condomínios

 de luxo como guetos de riqueza nas cidades, temos de

 enfrentar a tarefa organizada e sistemática de inclusão

 dos pobres. Uma sociedade em conflito social permanente

 termina não funcionando para ninguém. Os países menos

 desiguais são mais pacíficos e equilibrados. Não se trata 

 de distribuir armas e sim de equilibrar recursos.

Sai mais barato tirar as famílias da miséria e acabar

 com a pobreza do que arcar com as consequências

 em termos de doenças, insegurança e baixa produtividade

, além do sofrimento gerado. É bom senso, não é caridade

. Ampliar o bem-estar funciona para todo mundo.

O aumento de renda nas famílias pobres gera melhoria 

radical da qualidade de vida e muita felicidade. Um milhão

 a mais nas mãos do milionário gera apenas mais poder 

para buscar mais milhões. Em termos de utilidade social 

e dinamização econômica, o dinheiro é mais produtivo 

na base da sociedade.

Hoje 26 bilionários no planeta têm mais patrimônio acumulado

 do que 3,8 bilhões de pessoas, a metade mais pobre da população

 mundial. Não produziram essa riqueza, mas dela se

 apropriaram. Maior desigualdade da história. Milagre da

 intermediação financeira, tragédia para o sistema. Em 

vez de apenas criticar os ricos, temos de entender os 

 mecanismos que geram a riqueza improdutiva. Taxar

 a riqueza, distribuir para a base da sociedade.

Dinheiro na mão dos pobres gera consumo, o que estimula 

 produção, investimento e empregos. Dinheiro na mão dos

 muito ricos gera apenas especulação financeira, carros

 importados e contas no exterior. Rico útil é aquele que

 investe, gera emprego, bens e serviços, e paga os seus

 impostos. O resto é parasita.


Objetivo 8 – Promover o crescimento econômico

 sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno 

 e produtivo e trabalho decente para todos

O combate à desigualdade é também uma necessidade

 econômica. A melhor forma de dinamizar uma economia

 é assegurar maior capacidade de consumo na base da

 população. A ampliação da demanda de massa, tanto

 de bens comprados com a renda auferida como de bens 

coletivos acessados graças às políticas sociais públicas,

 gratuitas e universais, dinamiza as atividades econômicas 

do país, gera empregos, amplia a inclusão produtiva e assegura

 o desenvolvimento. Todos os exemplos de sucesso econômico,

 desde o New Deal americano na época da grande crise de 1929 

até a reconstrução da Europa no pós-guerra com o estado de

 bem-estar, estão baseados nesta fórmula simples: organizar

 a economia em função do bem-estar generalizado das famílias.

 É o que fez o Banco Mundial chamar a década de 2003 a 2013 de

 The golden decade of Brazil.

O evidente avanço dos países nórdicos ou do Canadá baseou-se 

no amplo consumo popular que dinamiza atividades econômicas,

 o que por sua vez amplia as receitas públicas por meio dos impostos,

 equilibrando a conta no nível do orçamento. Foi também o caso

 da Coreia do Sul, do Japão e da própria China. Enfrentar a

 desigualdade constitui a melhor forma de dinamizar a economia.

 O emprego se expande, o que realimenta o processo. Recursos

 na base da população se transfomam em demanda e dinamização

 econômica, recursos no topo geram mais aplicações financeiras,

 especulação e estagnação. Combater a desigualdade e promover

 o crescimento econômico sustentado fazem parte da mesma 

dinâmica. Não é questão de ideologia, e sim de conhecimento

 e bom senso sobre o que funciona no plano econômico e social.

O bem-estar das famílias também assegura melhor equilíbrio 

 ambiental. A renda de bolso que permite comprar produtos

 é apenas uma parte da redução da desigualdade. Os países que

 funcionam asseguram as dimensões coletivas do bem-estar

, como acesso universal e gratuito a bens públicos, em particular 

saúde, educação, cultura e segurança. Dizer que são “gastos”

 é absurdo, trata-se de atividades-fim, investimentos nas pessoas.

 Esse consumo coletivo não gera problemas ambientais, pelo 

contrário. Assegurar rios limpos, ar mais puro nas cidades, 

parques para lazer: batalhar a sustentabilidade é batalhar

 também pela nossa qualidade de vida. Do consumismo

 elitizado gerador de dramas ambientais temos de evoluir

 para consumo inteligente e distribuído.

Quando dizemos que temos de promover o desenvolvimento 

sustentado e sustentável, temos de pensar no processo decisório

 correspondente. Além da divisão dicotômica entre uma direita

 que quer privatizar e uma esquerda que quer estatizar, temos de

 pensar numa nova articulação inteligente de Estado, empresas 

e sociedade civil organizada. Hoje, com as corporações se

 apropriando do Estado e as OSCs perseguidas ou sobrevivendo

 com migalhas, estamos aprofundando o desastre. Slow-motion

 catastrophe, catástrofe em câmara lenta.


Objetivo 9 – Construir infraestruturas resilientes, promover

  industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação

Temos como dinamizar as atividades produtivas inclusive nas

 regiões mais atrasadas ou desfavorecidas. O avanço das novas

 tecnologias, a conectividade planetária, a ampla urbanização

 do planeta e o avanço das políticas sociais abrem espaço para 

o que as Nações Unidas têm chamado de Global New Deal, 

novo pacto global. Em vez de condomínios, muros e controles 

para se proteger dos pobres, em vez de gritarias ideológicas 

sobre as ameaças dos imigrantes, muito mais inteligente é 

promover o desenvolvimento onde há pobreza.

Estamos vivendo uma era explosiva de transformações 

 tecnológicas. O conhecimento é hoje o principal fator de

 produção. O seu uso não reduz o estoque, pelo contrário.

 O acesso aberto ao conhecimento tornou-se a grande

 avenida para o desenvolvimento. Permite ao mesmo tempo 

o acesso e o compartilhamento. São novas lógicas econômicas

 no quadro da economia do conhecimento. Em vez atravancar

 o conhecimento com patentes, copyrights e royalties temos de

 ampliar o acesso aberto às inovações, promovê-las. O 

conhecimento é um bem comum. Vejam o estudo de Elinor

 Ostrom, Nobel de economia, Understanding knowledge as a

 commons. O Chutando a escada de Ha-Joon Chang e tantas

 pesquisas demonstram que o atual sistema, em vez de promover

 a inovação, trava o seu potencial transformador. É o rentismo tecnológico.  

A conectividade é hoje planetária, logo todos terão tablet ou

 celular. O principal fator de produção, o conhecimento, 

navega nesses meios sem custos, as ondas eletromagnéticas 

são da natureza. Formar comunidades de interesse constitui

 um grande espaço de sociabilidade e de trocas. São caminhos

 colaborativos em expansão. Vejam o estudo de Arun 

Sundararajan, Economia compartilhada. Vejam os sistemas

 abertos de acesso como o CORE (China Open Resources for

 Education) da China, ou o OCW (OpenCourseWare) do MIT 

nos EUA. Temos aqui um imenso potencial subutilizado.

A sociedade do conhecimento e a era do acesso abrem espaço

 para uma economia colaborativa radicalmente descentralizada.

 O conhecimento, sendo imaterial, viaja nas ondas sem custo.

 Mais pessoas usarem multiplica oportunidades. É a economia

 de custo marginal zero. Compartilhar se torna mais produtivo 

do que competir. Vejam o livro de Jeremy Rifkin, A sociedade

 de custo marginal zero.

A economia do conhecimento depende menos de uma hierarquia

 verticalizada e mais de redes de compartilhamento. A pesquisa 

 fundamental desenvolvida nas universidades e instituições de 

pesquisa, os centros de desenvolvimento de tecnologias aplicada, 

os espaços de aplicação final na indústria, na saúde, na educação 

– tudo isso depende de um processo colaborativo ágil e aberto, sem

 burocracias. Hierarquia vertical, ordens, obediência e competição

 tendem a ser substituídas por redes abertas e flexíveis de

 colaboração. A nova economia que se expande sente-se mal 

dentro da roupa militarizada herdada do século passado.

Todos os dados sobre as 26 famílias mais ricas que dispõem

 de um patrimônio maior do que a metade mais pobre da

 população mundial, ou sobre 1% que tem mais do que os 99% 

seguintes, mostram uma realidade econômica radicalmente 

deformada. Mas é importante atentar para a classe burocrática

 que sustenta essa ínfima minoria, e que assegura o seu poder

 político, militar, jurídico, midiático. É a tropa de choque das elites

, cooptada por altos bônus e salários, os políticos, juízes,

 advogados, contadores, economistas, gestores financeiros que

 asseguram uma massa de sustento abaixo do topo da pirâmide. 

São os gestores da máquina econômica dominante, fiéis guardiães

 dos privilégios. Mas o aprofundamento das crises ambientais, s

ociais e econômicas tende a gerar uma nova consciência.

Sabemos o que deve ser feito. O desafio básico do planeta cabe

 numa frase. Estamos destruindo o planeta em proveito de uma

 minoria inoperante, enquanto os recursos necessários para 

assegurar tanto as políticas ambientais como as de redução das

 desigualdades são desviados para atividades de especulação

 financeira. Os nossos recursos, tanto financeiros como tecnológicos,

 devem ser reorientados para assegurar o bem-estar das famílias 

e a sustentabilidade. Nosso problema, evidentemente, não é de

 falta de recursos, e sim do seu uso inteligente. Em Wall Street,

 adultos bem treinados enriquecem com o desvio do dinheiro 

para aplicações improdutivas e gritam excitados Greed is Good!!

 Trata-se da instituição que maneja o maior volume de recursos

 financeiros do planeta. 

Acabar com a pobreza, assegurar crescimento e empregos, e

 promover a industrialização sustentável pertencem a uma lógica

 comum e integrada: democratizar o acesso aos recursos. Em

 Paris, governos de quase todo o mundo apoiaram a resolução

 de se levantar 100 bilhões de dólares anuais para ajudar a 

[enfrentar o drama da mudança climática. Em paraísos fiscais,

 fruto de evasão fiscal, corrupção e comércio ilegal, e servindo à 

 

especulação improdutiva, temos entre 200 e 300 vezes mais. Isso

 não funciona. Como escreve Joseph Stiglitz, 40 anos de

 neoliberalismo demonstraram o seu fracasso. Sim, Stiglitz, 

ex-economista chefe de Clinton e do Banco Mundial. Martin 

Wolf, economista chefe do Financial Times, resume: o sistema

 perdeu a sua legitimidade. Temos, sim, de evoluir para um

 novo pacto global se quisermos que os ODS realmente se materializem.

 


ReproduçãoO combate à desigualdade

 é uma necessidade ética. Não é concebível que no século 

XXI tenhamos manifestações trágicas de miséria. Estamos

 destruindo o planeta em proveito de uma minoria inoperante.

 Este artigo integra o dossiê Objetivos de Desenvolvimento

 Sustentável da ONU, que a revista ComCiência publica nesta semana.

 


 

 

 

 

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