BRASIL
Relator da ONU pede para
Bolsonaro “reconsiderar”
celebração do golpe
Por Lúcia Müzell
Fabián Salvioli é relator especial sobre a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não-repetição, ligado ao Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU.ONU/Rick Bajornas/ divulgação
A ONU Direitos Humanos divulgou um comunicado
nesta sexta-feira (29) no qual pede para que o
presidente Jair Bolsonaro “reconsidere” os planos
de comemoração do aniversário do golpe militar
no Brasil, ocorrido em 31 de março de 1964. Em
entrevista à RFI, o relator especial sobre a
promoção da verdade, justiça, reparação e
garantias de não-repetição, Fabián Salvioli, que
assinou o comunicado, disse que os comentários
do líder brasileiro a respeito da ditadura são
“de uma gravidade inaceitável”.
Nesta semana, Bolsonaro solicitou que o Ministério da Defesa
promovesse neste fim de semana “as comemorações devidas”
dos 55 anos do golpe, que resultou em uma ditadura de 1964 a
1985. Depois, Bolsonaro recuou e falou em “rememorar” a data,
mas até o momento não fez qualquer menção de condenação
aos anos de chumbo em vigor no país, durante os quais os
partidos políticos foram extintos e as eleições diretas, suspensas.
“Mais de 8.000 indígenas e pelo menos 434 suspeitos de serem
dissidentes políticos foram mortos ou desapareceram
forçadamente. Estima-se também que dezenas de milhares
de pessoas foram arbitrariamente detidas e/ou torturadas”,
afirma o texto divulgado nesta tarde. “No entanto, uma lei de
anistia promulgada pela ditadura militar impediu a
responsabilização pelos abusos”, lembra o comunicado.
Além da publicação do documento, a missão diplomática do
Brasil nas Nações Unidas foi contatada pelo órgão, ligado ao
Alto Comissariado dos Direitos Humanos, com sede em Genebra.
À RFI, Fabián Salvioli se disse “muito surpreso” e “preocupado”
com as declarações de Bolsonaro sobre o assunto, e ressaltou
que, enquanto chefe de Estado, ele tem “obrigações”.
Leia abaixo a entrevista completa:
RFI Brasil: Qual foi a sua reação ao tomar conhecimento das
declarações de Bolsonaro?
Fabián Salvioli: Fiquei sabendo das declarações e fiquei muito
surpreso com elas, vindas de um presidente de um país
democrático. Celebrar um golpe de Estado é um pouco
incompreensível, em primeiro lugar, mas é mais grave se
consideramos que este golpe de Estado instalou um regime
que perpetrou graves e massivas violações dos direitos humanos,
constatadas pelo próprio Estado brasileiro.
O relatório da Comissão da Verdade é muito claro em relação
a isso, assim como as sentenças da Corte Interamericana dos
Direitos Humanos. É muito preocupante que o presidente
Bolsonaro possa celebrar ou abrir a porta para uma celebração
de um golpe de Estado responsável por torturas,
desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais.
Bolsonaro nunca escondeu ser a favor do regime militar, mas
agora ele é presidente do país. Isso muda tudo?
Sim, o papel de chefe de Estado engendra obrigações. Cada um e
cada uma podem ter as suas opiniões pessoais sobre o golpe de
Estado e sua posição política. Isso é uma questão. Mas enquanto
presidente da República, é de uma gravidade inaceitável, porque
tratam-se de declarações oficiais do Estado que permitem o
cometimento de fatos gravíssimos. Na realidade, seria obrigação
dos estados fazer investigações, identificar responsáveis e reparar
as vítimas integralmente. São obrigações que ainda não foram
cumpridas pelo Estado.
Bolsonaro e vários de seus aliados defendem até uma revisão dos
livros de história sobre o período, com o argumento de que os
historiadores escreveram a ditadura sob uma perspectiva de
esquerda. Essa tentativa de reescrever a história da ditadura
aconteceu em outros países latino-americanos?
Sim, sempre houve opiniões no sentido de gerar um recuo na
história. Mas essas opiniões não têm nenhum apoio que
possamos considerar sério. Há relatórios da Comissão
Interamericana dos Direitos Humanos, há relatórios das Nações
Unidas sobre a situação dos direitos humanos no Brasil e da
situação na época [da ditadura], há também as sentenças da
Corte Interamericana dos Direitos Humanos, além do relatório
da Comissão da Verdade do Brasil. O que mais precisa? Isso
não é um problema de direita ou de esquerda. É tortura,
desaparecimentos e execuções extrajudiciais, e isso é inaceitável.
Tendo em vista os engajamentos do Brasil junto à ONU, inclusive
no Alto Comissariado de Direitos Humanos, a atitude de
Bolsonaro pode ter implicações?
Sim, é um Estado que ratificou instrumentos de proteção dos
direitos humanos e deve não apenas transmitir relatórios
periódicos ao Conselho de Direitos Humanos da ONU como
aos órgãos que promovem a verdade, a exemplo dos comitês
de direitos humanos e contra a tortura. Imagino que esses
comitês vão observar com preocupação a esse tipo de
declaração e serão objeto de debates públicos durante a
próxima apresentação do Brasil diante desses dois órgãos.
Já enviei uma carta de alegações à missão diplomática do
Estado brasileiro e um comunicado foi publicado ainda nesta
sexta-feira. O comunicado lembra as conclusões da Comissão
Nacional da Verdade do Brasil. Por exemplo, que mais de
8.000 indígenas sofreram violações dos direitos humanos,
quase 450 dissidentes políticos foram executados ou
desapareceram. Fazer apologia a esse tipo de coisa é algo
insustentável.
Essa postura de Bolsonaro gera consequências junto à
comunidade internacional? Pode isolar o país, já que o
respeito aos direitos humanos e a não apologia a atrocidades
como mortes e desaparecimentos políticos costumam ser
condições para um país ser respeitado enquanto interlocutor,
nas questões internacionais?
Sim, absolutamente. O Brasil sempre se comprometeu em
compromissos internacionais nesse sentido. A diplomacia
do Brasil sempre foi muito séria. Mas vemos um recuo, um
recuo evidente e com consequências muito graves.
Espero que o presidente da República vá refletir e vá proibir
todo o tipo de celebração de um golpe de Estado, enquanto
presidente democrático. Mas também espero que ele condene
os crimes cometidos pelo Estado, porque ele tem
responsabilidades que não podem ser delegadas.
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