quinta-feira, 30 de agosto de 2012


Ato médico aprovado,

 a vergonha para os 

médicos éticos

Aprovado na última quarta-feira pela Comissão de Constituição e Justiça do
Congresso do Senado Federal, o texto do relator Antônio Carlos Valadares
estabelece uma hierarquia entre a medicina e as outras profissões da área
da saúde, condicionando à autorização do médico o acesso aos serviços de saúde.
Biomédicos, farmacêuticos, enfermeiros, psicólogos, acupunturistas, nutricionistas, fisioterapeutas, odontólogos, fonoaudiólogos, optometristas, terapeutas ocupacionais,
 biólogos e outros profissionais da saúde não podem mais exercer cargos de chefia e
 direção em núcleos multidisciplinares de saúde, mas apenas de direção
 administrativa de serviços. A própria filosofia e prática multidisciplinar, que já
vem engatinhando
 no SUS, em tentativas sempre derrubadas pelas políticas médicas corporativistas
, entra num
retrocesso sem parâmetros na história.
O Conselho Federal de Medicina, que articula desde 2002 a aprovação do Ato Médico,
 acredita que a necessidade de regulamentação da profissão é fundamental já que há
 dois mil anos, quando foi fundada, não existiam outros profissionais de saúde e, assim,
 todos os diagnósticos e prevenções estavam sob controle dos médicos. Os primeiros
 textos do Ato Médico reivindicavam que a aplicação de simples injeções fosse
 exclusividade dos médicos, por exemplo. A regulamentação da profissão é um
 direito dos médicos, mas as reivindicações estapafúrdias deixam claro que é apenas
 uma briga de mercado, uma tentativa de bloqueio corporativista contra o crescimento
das outras profissões e não a favor da medicina.
O cerco aos profissionais de saúde não-médicos foi longe, e mesmo depois de tantos
 remendos, ainda apresenta problemas. No artigo 4º da PL aprovada, o diagnóstico
nosológico se transforma em exclusividade dos médicos e atrapalha diretamente o
exercício de outros profissionais de saúde, como os psicólogos, que agora não podem
 mais diagnosticar sinais e sintomas das doenças.
Fisioterapeutas que atendem pacientes com problemas respiratórios ficarão literalmente segurando o balcão na mão até a chegada do médico: a “definição da estratégia
 ventilatória inicial” passa a ser uma exclusividade médica.
As enfermeiras brasileiras continuam de bandeja na mão diante da aprovação do Ato
Médico, que propõe um modelo falido de atendimento à saúde, centrado no
 atendimento clínico, medicamentoso, intervencionista e hospitalocêntrico, ou seja,
 tudo aquilo que enriquece médicos e corporações privadas de saúde. A prestação
 de serviços desse modus operandi aos cidadãos é o que temos visto diariamente
 estampando capas de jornais. Os médicos estão sobrecarregados, há sobra de
 clientes pobres, a briga é por clientes de alto padrão e os argumentos caem como
 luva para uma sociedade que foi aculturada à mitomania médica.
Aprovado o Ato Médico e posto em prática, vamos ter falta de médicos no SUS e
 excesso de médicos em clínicas privadas de fonoaudiologia, fisioterapia, casas de parto, brincando de chefes sabe-se lá com que ideias de poder. A desvalorização dos outros profissionais de saúde, que vieram crescendo na área privada mais rapidamente
 do que na pública, vai supervalorizar a figura do médico no atendimento público.
 Um grande golpe em que a classe médica será a única beneficiada.
A competência médica não está em cheque, nunca esteve, os médicos sempre
 tiveram e sempre terão o seu lugar na sociedade; o choque é entre a visão
 corporativista, fechada, que não dialoga com a saúde de maneira multidisciplinar
 e as novas formações, muitas delas nem tão novas, que não vêem a saúd
 apenas como ausência de doença, mas sob conceitos mais amplos. O que faz
falta atualmente nos hospitais públicos é a presença maior de outros profissionais
 de saúde, eles serviriam para, no mínimo, desafogar as filas, mas obviamente não
é invertendo a lógica que se encontrará a solução do caminho do meio.
Os psicólogos e nutricionistas, por exemplo, não estão reivindicando receitar
 medicamentos, mas defendendo o direito de muitos cidadãos de curarem seus
transtornos emocionais sem entupir-se de medicamentos e aumentar as filas das
 cirurgias desnecessárias. As categorias atingidas não estão reivindicando poder
 sobre a saúde das pessoas e muito menos sobre suas doenças, seus pesares,
mas é exatamente isso que o Ato Médico significa: um maior poder dos médicos,
 como se já não fosse grande o bastante, sobre nossa saúde e principalmente
 nossas doenças, quando nos tornamos extremamente vulneráveis.
Tenho conversado com vários amigos médicos e nenhum deles é a favor do Ato
 Médico, todos eles trabalham em conjunto com outros profissionais de saúde,
 encaminham pacientes para psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas
 e nenhum deles acha graça da síndrome da sexta-feira à noite, quando os
 médicos plantonistas recebem nos hospitais pessoas que não têm doença
 alguma, apenas carência, dor de solidão.
Meus amigos médicos éticos pensam que é preciso melhorar o acesso a outras
 categorias, ampliar vagas nos hospitais e maternidades para outras categorias
e não o contrário. Eles sabem que muitos de seus colegas se chateiam com as
carências da sexta-feira à noite e são capazes de receitar remédios para dormir, irresponsavelmente, apenas para não encaminhar a um outro profissional
 melhor habilitado. De qualquer maneira não há nos hospitais plantonistas
 de outras áreas e, com a aprovação do Ato Médico, a tendência do quadro
 não é melhorar.
O momento não é bom para centralizar a saúde ainda mais nas mãos dos
médicos. Como temos visto aqui nessa coluna, as parteiras e enfermeiras
 obstetras têm feito muita falta dentro dos hospitais para diminuir o
vergonhoso número de cesarianas no país. O Ato Médico vai contra o
desenvolvimento de uma medicina humanizada, que é necessariamente
 rica em multidisciplinaridade. Por vaidade da corporação e reserva de
 mercado as mulheres não podem contar com uma assistência digna no
 trabalho de parto, sendo rotineiramente encaminhadas, com as desculpas
mais estapafúrdias e sem base científica, diretamente para a cirurgia de
 extração de bebês, mais rápida e mais rentável e também mais arriscada 
para a saúde da dupla mãe-bebê.
Por estudarem demais as tecnologias, os procedimentos, as químicas dos
 remédios e menos a fisiologia do corpo humano e sua estreita relação com
hormônios e sintomas comportamentais, os pediatras são os maiores
 incentivadores de desmames precoces. A maior parte dos bebês nascidos
 no Brasil já sai do hospital com uma receita de leite artificial. Não é costume
 desse profissionais, médicos pediatras, encaminhar as parturientes para os
bancos de leite, locais em que elas teriam acesso a informações de qualidade,
 técnicas de pega, atendimento ou encaminhamento à atenção física e
 psicológica adequada por outros profissionais de saúde.

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