O jornalismo nos tempos de Bolsonaro
As editorias de política dos grandes jornais estão funcionando como se fossem entregadores de pizza. Entregam a mercadoria de acordo com o pedido do cliente. Por maior que seja a encrenca, a trapalhada, o presidente da República sempre sai ganhando, como se fosse um paladino que quer o Brasil nos trilhos.
Vejam vocês como funciona o mundo da comunicação e da linguagem quando o assunto é Jair Bolsonaro: quando se tem um escândalo, um princípio de escândalo, um malfeito ou um ato de corrupção explícita de alguns dos integrantes do governo, a notícia dos grandes jornais é sempre na seguinte direção: “Bolsonaro ‘afasta’ assessor, acusado de favorecer aliados”.
Tome-se o último caso do secretário-executivo da Casa Civil, Vicente Santini, que usou um avião da FAB “só pra ele”. O espaçoso número 2 de Onyx Lorenzoni foi da Suíça à Índia como um paxá, ao custo estimado de R$ 740 mil para os cofres públicos brasileiros.
O que o jornalismo brasileiro destaca? Que Bolsonaro “já” destituiu o secretário do cargo e que “quer” tomar mais medidas cabíveis de punição.
O que isso significa, tecnicamente? Que Bolsonaro está “separado” semanticamente da imagem negativa de seu governo. É um fenômeno também gramatical: Bolsonaro não ‘participa’ da cultura do desvio de verba pública – não é sujeito – mas, sim, a combate. É um modo de cobertura jornalística diametralmente oposto àquela destinada aos governos de orientação mais à esquerda.
O enfoque editorial dos grandes jornais com relação ao governo Bolsonaro tem sido esse, com raríssimas exceções.
Vejam a manchete do jornal Folha de S. Paulo, sobre o episódio Santini: “Assessor do Planalto usa jato da FAB para voo exclusivo à Índia e é afastado por Bolsonaro”, do Estadão: “Bolsonaro vai demitir auxiliar de Onyx que fez ‘voo particular’ em avião da FAB” e d’O Globo: “Bolsonaro: secretário-executivo da Casa Civil, que usou avião da FAB, será exonerado”.
Quem precisa de publicitário com uma imprensa dessas? Quem precisa de Wajngarten? Quem precisa gastar milhões em comunicação?
Ato contínuo, quando os institutos de pesquisa vão a campo para aferir a popularidade do presidente, ficamos surpresos por ele estar bem avaliado e com viés de alta.
Alguns poderiam dizer: Bolsonaro foi rápido.
Ora, quando o PT era rápido em exonerar algum integrante do governo envolvido em desvios de recursos públicos, a linha editorial dos grandes jornais era: destacar o desvio e secundarizar o afastamento.
No caso do PT, a questão é ainda mais dramática: os governos do PT construíram uma rede imensa de controle técnico no serviço público – foram os governos que mais investiram em órgãos de controle. Os afastamentos não eram individuais, eram em escala, viabilizados por políticas públicas de Estado.
Mas, como sabemos, política pública ‘só’ dá resultado, não dá notícia.
Essas revelações de corrupção do governo Bolsonaro têm sido tratadas editorialmente, portanto, como verdadeiras peças publicitárias em favor de Bolsonaro. Até quando os filhos dão declarações infelizes, o pai aparece destacado como a voz da autoridade que tem o poder de restituir a ‘verdade’ e a ordem.
Goebbels não faria melhor.
A questão técnica, no entanto, não é irrelevante: aquilo que poderia proceder enquanto padrão editorial, conectado a um ideal mínimo de bom jornalismo, nos governos do PT, por exemplo – que seria destacar o combate à corrupção daqueles governos e o investimento pesado em órgãos de controle, bem como na independência do Ministério Público e da Polícia Federal -, é agora aplicado de maneira sub reptícia ao governante que mais desmantelou esses mesmos órgãos de controle e mais precarizou a independência da Polícia Federal, fazendo dela moeda de troca na divisão de poder nos ministérios, num processo de aparelhamento indisfarçável e sem a menor pretensão de disfarçar.
O jornalismo, parece, foi uberizado. Esses profissionais acabam por trabalhar como entregadores de iFood: entregam o que os mandam entregar sem sequer ver o que está dentro – talvez, achando que são empreendedores no competitivo mundo da informação.
Ignoram copiosamente o mundo da produção do sentido, das injunções ideológicas presentes em todo e qualquer enunciado, jornalístico ou não.
Eu converso com jornalistas, às vezes. Os ‘com diploma’ são os casos mais emblemáticos. Eles são treinados para ignorar a amplitude semântica do enunciado, bem como o regime de pressupostos instaurado por uma realidade institucional.
São treinados para respeitar a institucionalidade das informações fornecidas por autoridades, para acreditarem em descrições factuais de mundo, para servirem à demanda asséptica, preconceituosa e glamourizada de leitores que precisam se proteger da realidade social do país mais desigual do planeta.
São instruídos a jamais ousar na interpretação, em hipótese alguma. São, por isso, levados a acreditar na transparência da linguagem, na institucionalidade do sentido (o sentido tem dono: é o dicionário e, em última instância, o patrão) e não no funcionamento real do discurso e na plurivocalidade dos processos de significação.