sábado, 9 de junho de 2012

MOSQUITOS PERIGOS NO AR


Uma lenda diz que, certa vez, na Índia, Buda resolveu meditar em um lugar infestado
 de mosquitos. Em meio ao zumbido infernal e às picadas, nem os seus discípulos
 acreditaram que ele seria capaz de manter a serenidade e o respeito que tinha
 por todos os seres vivos. Dessa vez, pensaram eles, até o iluminado perderia a
 paciência e acabaria matando ao menos um desses insetos. Para espanto de 
todos, Buda resistiu. Meditou e saiu de lá impávido, sem dar um peteleco 
sequer em mosquito algum. Em compensação, ele nunca mais voltou àquele lugar.
Não é à-toa que nem o paradigma da paciência oriental tenha sido capaz de 
suportar os mosquitos. Desde que os primeiros humanos caminharam sobre a
 Terra, os homens travam uma batalha de vida ou morte contra esses pequenos
 insetos, que tornaram regiões inabitáveis, exterminaram povos e chegaram a
 mudar o rumo de guerras. Os casos recentes de dengue no Rio de Janeiro
 lembraram aos cariocas o que já era óbvio para os parentes de um milhão de
 pessoas que morrem de malária todos os anos: com sua sede de sangue e com
 os parasitas que carregam, os mosquitos são os mais antigos e poderosos 
inimigos da espécie humana. Qualquer descuido no controle desses insetos – 
também conhecidos como pernilongos ou muriçocas – é punido com mortes e
 doenças.
“O mosquito serve apenas a si próprio. Ele não ajuda a aerar o solo como as
 formigas, não ajuda a polinizar as plantas como as abelhas, nem serve de
 alimento essencial para outros animais”, diz Andrew Spielman, imunologista
 da Universidade de Harvard, Estados Unidos, e um dos maiores especialistas
 em doenças tropicais do mundo. Spielman é um dos autores do livro Mosquito:
 A Natural History of Our Most Persistent And Deadly Foe (“Mosquito: uma 
história natural do nosso inimigo mais mortal e persistente”), em que descreve 
a história da nossa luta contra esses insetos além de revelar as estratégias que
 eles usaram para sobreviver à custa do nosso sangue. “Eles não têm nenhum
 outro propósito além de perpetuar a própria espécie”, diz Spielman.
Vale tudo na luta dos mosquitos para se reproduzir. Na espécie neozelandesa
 Opifex fuscus, por exemplo, o macho estupra as fêmeas assim que elas nascem
. Ele sobrevoa águas paradas em busca de pupas – uma espécie de casulo onde
 eles ficam antes de se tornarem adultos – e as ataca, provocando o nascimento
 do inseto. Se o recém-nascido for fêmea, ele força a cópula enquanto ela, com
 as pernas ainda presas na pupa, não tem como se defender.
No Culex pipiens, a mais abundante das 2 400 espécies do inseto, a reprodução
 é mais pacífica. (Você provavelmente já esmagou muitos Culex contra a parede 
– eles são os famosos “mosquitos caseiros” que costumam zumbir no seu ouvido
 durante as noites de verão.) Para achar uma parceira, os machos dessa espécie
 formam nuvens próximo de um ponto de referência, como uma antena, uma
 chaminé ou mesmo na sua cabeça. A fêmea é atraída para o centro da nuvem e
 vários machos voam até ela, mas apenas um a agarra com firmeza suficiente
 para levá-la até o chão e copular. Uma vez que isso acontece, ela consegue
 guardar esperma suficiente no corpo para pôr ovos durante toda a sua vida.
 Falta apenas conseguir o alimento necessário para produzir os ovos.
 Enquanto algumas espécies se alimentam de frutas ou do néctar de flores,
 a maioria sai à caça de uma refeição especial: o sangue de animais como
 você e eu. A reprodução é o único motivo pelo qual os mosquitos picam e,
 portanto, apenas as fêmeas procuram o sangue humano.
As da espécie Culex, por exemplo, atacam durante a noite e, muito
 provavelmente, são elas que fazem aquele zumbido agudo que perturba o 
seu sono. O barulho vem das asas batendo entre 250 a 500 vezes por segundo.
 Você agita os braços para se livrar do predador. Em vão. O esforço só ajuda 
o mosquito a localizar melhor seu alvo. Ainda que os cientistas não tenham 
descoberto todas as substâncias químicas que eles utilizam para seguir o 
rastro da presa, sabe-se que o gás carbônico, produzido por nossa respiração,
 e o ácido láctico, que liberamos em grande quantidade ao nos exercitar, estão
 entre elas. Eles também descobriram que esses insetos são fascinados por pés
 humanos com cheiro de queijo. Ou seja: se você não tinha motivo melhor para
 manter os pés limpos, que a ameaça dos mosquitos sirva de estímulo para você
 evitar a todo custo o chulé.
Ao se estapear, seus braços em movimento estimulam a visão do inseto.
 Os olhos dos mosquitos são compostos de centenas de lentes que não 
conseguem focar uma imagem. Tudo o que o animal faz é fixá-las em um
 ponto de luz e usá-lo como referência. Por esse motivo, pessoas com pele
 clara – que refletem mais luz – são mais atacadas. Eles também fogem de 
sombras ou objetos escuros, como a do chinelo que você pegou e com o 
qual tenta pateticamente acertá-lo. O mosquito chega próximo o suficiente
 da pessoa para sentir o calor do seu corpo e atacar a região mais quente:
 onde há pele descoberta. “Ele reage automaticamente a estímulos como
calor, cheiro e pressão do ar”, diz Spielman. “É como se o mosquito pensasse 
com a pele.”
O ataque é cirúrgico. Com duas lâminas, ele corta a pele da vítima e espalha
 uma saliva com substâncias que inibem a reação do seu corpo para estancar
 o sangramento. Em menos de 90 segundos, um mosquito consegue absorver
 entre duas a três vezes o próprio peso em sangue. Logo em seguida, 
arrasta-se até um lugar seguro. Lá, realiza um dos maiores feitos de digestão
 do mundo animal: durante 45 minutos, elimina os líquidos do sangue sob
 forma de urina – é verdade: mosquito faz xixi – e, depois disso, acumula
energia suficiente para pôr cerca de 240 ovos em águas paradas e sujas.
 As larvas do Culex têm estratégias para escapar de predadores como
 besouros e mariposas. Elas conseguem perceber a sombra desses animais
 e afundar, camuflando-se no fundo da água. O mesmo não acontece com 
outros mosquitos, como o Aedes aegypti, transmissor da dengue, que 
precisa de lugares protegidos como buracos de árvore, pneus velhos ou
 garrafas cheias de água.
Durante a refeição, o mosquito absorve não só o sangue, mas também 
qualquer parasita que esteja nele, que pode se desenvolver dentro do
 corpo do inseto. Ao picar uma pessoa com filariose, por exemplo, 
também conhecida como elefantíase, ele absorve vermes ainda em
 seus primeiros estágios. No estômago dele, os microorganismos abrem
 caminho até os músculos das asas, onde começam a crescer. Dirigem-se 
então para a cabeça, se instalam nas lâminas que furam a pele da vítima e
 pronto: o verme se projeta na ferida e vai para os vasos linfáticos da presa, 
onde pode crescer até ficar do tamanho do braço de um homem adulto. 
Como em algumas pessoas o sistema imunológico reage acumulando líquidos,
 braços, pernas e genitais incham até tomar proporções gigantescas.
Apesar de causar tanta destruição em animais grandes como nós, os
 mosquitos, com seu tamanho insignificante, permanecem incólumes 
às doenças que transmitem. Eles continuam picando outras pessoas, 
espalhando a doença e até adquirindo novos parasitas, o que facilita
 ainda mais a dispersão de epidemias. “Não há nada pior que um
 mosquito velho”, diz Andrew Spielman.
Há 20 000 ou 30 000 anos, quando as sociedades humanas não passavam de
 pequenas tribos isoladas, as epidemias tinham um impacto localizado: ou
 dizimavam a população inteira ou davam imunidade (ao menos parcial) aos 
que sobreviviam. Quando o homem começou a comerciar e a guerrear em
 lugares distantes, viajantes que não tinham imunidade logo descobriram a 
dureza que era sobreviver em terras estrangeiras. Durante o Império Romano,
 por exemplo, qualquer estrangeiro que passasse o verão na Itália corria o risco
 de ser contaminado pela malária. Os exércitos que tentavam cercar Roma
 perdiam facilmente metade de seus homens para as doenças. As enfermidades
 também podiam ser transportadas para lugares distantes. Os mesmos navios
 que trouxeram os escravos da África para a América levaram os mosquitos que 
transmitem a febre amarela, a malária e a dengue .
Até o final do século XIX, ninguém acreditava que seres tão insignificantes
 pudessem causar tanto estrago. Alguns exploradores associaram doenças como a
 malária a lugares com água suja e parada. “Acreditava-se, na época, que esses
 males eram provocados por ‘miasmas’, emanações ‘insalobras’ do solo e do ar”,
 afirma o epidemiologista Arary da Cruz Tiriba, da Universidade Federal de
 São Paulo. A palavra malária, por exemplo, vem da expressão italiana para
 “mau ar”. Sem a menor idéia de como essas doenças poderiam ser controladas
, os europeus do século XIX não conseguiam dominar completamente o interior 
de suas colônias africanas. Já os negros, que nasceram ali e desenvolveram 
imunidade ao menos parcial, transitavam por lá sem nenhum problema. Ao
 tentar achar um motivo para essas diferenças, os britânicos lançaram a hipótese 
de que os cérebros europeus eram “mais delicados” e, por isso, sofriam com o 
sol dos trópicos. Por esse motivo, começaram a utilizar os chapéus típicos de 
exploradores britânicos.
Alguns suspeitavam que o contato com os negros poderia ter alguma influência
 e construíram casas separadas, aumentando a segregação racial que dura até
 hoje em várias ex-colônias.
Foi o médico cubano Carlos Finlay, em 1880, quem descobriu que os mosquitos
 podiam transmitir doenças. Poucas pessoas levaram a hipótese a sério até 1900,
 quando tropas americanas em Cuba sofreram diversas baixas devido à
 febre amarela. Uma equipe chefiada pelo médico Walter Reed analisou
 os casos da doença e conseguiu provas de que a teoria de Finlay estava
 correta. A partir daí, os esforços se voltaram para combater os mosquitos,
 o que não só eliminou a febre amarela da capital de Cuba como permitiu
 que os americanos terminassem o Canal do Panamá, em 1914. A gigantesca
 obra de engenharia que ligaria o Oceano Atlântico e o Pacífico havia sido
 iniciada pelos franceses em 1881. Mas a malária e a febre amarela infectaram
30% da mão-de-obra tornando o projeto praticamente inviável. Os americanos
 retomaram o trabalho e, com a ajuda de membros da equipe de Reed,
conseguiram reduzir esse número para 2%.
Apesar desse sucesso, muitas pessoas ainda acreditavam nos miasmas e 
ridicularizavam os esforços públicos para combater os pequenos insetos
 voadores. As primeiras evidências de que o combate ao mosquito era
 realmente eficaz para eliminar doenças em um vasto território veio do Brasil. 
O médico Oswaldo Cruz formou brigadas para combater os insetos e, mesmo
 sob protestos da população, conseguiu erradicar, em 1907, a febre amarela
 do Rio de Janeiro. Em 1940, o médico americano Fred Soper destruiu criadouros 
e espalhou larvicidas e inseticidas para eliminar do Brasil o Anopheles gambiae, 
o maior transmissor de malária do mundo. Logo em seguida, Soper foi mandado
 para combater as doenças nos acampamentos da Segunda Guerra Mundial, onde
 tornou-se o primeiro a verificar a eficácia de uma nova arma no combate aos
 insetos, o dicloro-difenil-tricloroetano, mais conhecido como DDT. Esse inseticida 
mostrou ser tão eficaz no combate aos insetos que logo passou a ser amplamente
 utilizado em todo o mundo.
No entanto, descobriu-se depois que a substância também afetava peixes, aves 
e outros animais além dos insetos. Para piorar, os mosquitos tornavam-se
 resistentes à substância em poucos anos. Por esses motivos, o DDT foi banido
 em quase todos os continentes.
Nenhum cientista de bom senso acredita que um dia chegaremos a eliminar em
 definitivo os mosquitos. Eles são tantos e tão variados que é praticamente
 impossível exterminá-los. Algumas espécies são capazes de voar a milhares de
 metros de altura; outras são tão resistentes que chegam a sobreviver em locais
de temperaturas tão gélidas e secas quanto o ártico ou tão úmidas e quentes
 quanto uma floresta tropical. Além disso, os cientistas ainda têm muitas
 questões sem resposta em relação aos mosquitos. Não se sabe, por exemplo,
 como eles distinguem o ser humano de outros animais, nem por que as
 espécies transmitem determinadas doenças e são imunes a outras.
Há quem pensa alterar os mosquitos geneticamente para impedir que 
transmitam doenças. Diversas equipes ao redor do mundo estão tentando 
modificar a sua programação genética para criar variações que não possam
carregar parasitas. Se um grande número desses mosquitos modificados for 
lançado no ambiente, é possível que os genes se espalhem por toda a população
 desses animais e eles se tornem incapazes de fazer com que novas epidemias
 se alastrem.
Por enquanto, as medidas de maior sucesso ainda são alguns inseticidas e a 
destruição dos lugares em que eles se reproduzem. Até que uma solução 
definitiva apareça, qualquer descuido pode ser fatal. Que o digam as mais 
de 120 000 vítimas de dengue registradas no Estado do Rio de Janeiro até
 o fechamento dessa edição.

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