Uma lenda diz que, certa vez, na Índia, Buda resolveu meditar em um lugar infestado
de mosquitos. Em meio ao zumbido infernal e às picadas, nem os seus discípulos
acreditaram que ele seria capaz de manter a serenidade e o respeito que tinha
por todos os seres vivos. Dessa vez, pensaram eles, até o iluminado perderia a
paciência e acabaria matando ao menos um desses insetos. Para espanto de
todos, Buda resistiu. Meditou e saiu de lá impávido, sem dar um peteleco
sequer em mosquito algum. Em compensação, ele nunca mais voltou àquele lugar.
Não é à-toa que nem o paradigma da paciência oriental tenha sido capaz de
suportar os mosquitos. Desde que os primeiros humanos caminharam sobre a
Terra, os homens travam uma batalha de vida ou morte contra esses pequenos
insetos, que tornaram regiões inabitáveis, exterminaram povos e chegaram a
mudar o rumo de guerras. Os casos recentes de dengue no Rio de Janeiro
lembraram aos cariocas o que já era óbvio para os parentes de um milhão de
pessoas que morrem de malária todos os anos: com sua sede de sangue e com
os parasitas que carregam, os mosquitos são os mais antigos e poderosos
inimigos da espécie humana. Qualquer descuido no controle desses insetos –
também conhecidos como pernilongos ou muriçocas – é punido com mortes e
doenças.
“O mosquito serve apenas a si próprio. Ele não ajuda a aerar o solo como as
formigas, não ajuda a polinizar as plantas como as abelhas, nem serve de
alimento essencial para outros animais”, diz Andrew Spielman, imunologista
da Universidade de Harvard, Estados Unidos, e um dos maiores especialistas
em doenças tropicais do mundo. Spielman é um dos autores do livro Mosquito:
A Natural History of Our Most Persistent And Deadly Foe (“Mosquito: uma
história natural do nosso inimigo mais mortal e persistente”), em que descreve
a história da nossa luta contra esses insetos além de revelar as estratégias que
eles usaram para sobreviver à custa do nosso sangue. “Eles não têm nenhum
outro propósito além de perpetuar a própria espécie”, diz Spielman.
Vale tudo na luta dos mosquitos para se reproduzir. Na espécie neozelandesa
Opifex fuscus, por exemplo, o macho estupra as fêmeas assim que elas nascem
. Ele sobrevoa águas paradas em busca de pupas – uma espécie de casulo onde
eles ficam antes de se tornarem adultos – e as ataca, provocando o nascimento
do inseto. Se o recém-nascido for fêmea, ele força a cópula enquanto ela, com
as pernas ainda presas na pupa, não tem como se defender.
No Culex pipiens, a mais abundante das 2 400 espécies do inseto, a reprodução
é mais pacífica. (Você provavelmente já esmagou muitos Culex contra a parede
– eles são os famosos “mosquitos caseiros” que costumam zumbir no seu ouvido
durante as noites de verão.) Para achar uma parceira, os machos dessa espécie
formam nuvens próximo de um ponto de referência, como uma antena, uma
chaminé ou mesmo na sua cabeça. A fêmea é atraída para o centro da nuvem e
vários machos voam até ela, mas apenas um a agarra com firmeza suficiente
para levá-la até o chão e copular. Uma vez que isso acontece, ela consegue
guardar esperma suficiente no corpo para pôr ovos durante toda a sua vida.
Falta apenas conseguir o alimento necessário para produzir os ovos.
Enquanto algumas espécies se alimentam de frutas ou do néctar de flores,
a maioria sai à caça de uma refeição especial: o sangue de animais como
você e eu. A reprodução é o único motivo pelo qual os mosquitos picam e,
portanto, apenas as fêmeas procuram o sangue humano.
As da espécie Culex, por exemplo, atacam durante a noite e, muito
provavelmente, são elas que fazem aquele zumbido agudo que perturba o
seu sono. O barulho vem das asas batendo entre 250 a 500 vezes por segundo.
Você agita os braços para se livrar do predador. Em vão. O esforço só ajuda
o mosquito a localizar melhor seu alvo. Ainda que os cientistas não tenham
descoberto todas as substâncias químicas que eles utilizam para seguir o
rastro da presa, sabe-se que o gás carbônico, produzido por nossa respiração,
e o ácido láctico, que liberamos em grande quantidade ao nos exercitar, estão
entre elas. Eles também descobriram que esses insetos são fascinados por pés
humanos com cheiro de queijo. Ou seja: se você não tinha motivo melhor para
manter os pés limpos, que a ameaça dos mosquitos sirva de estímulo para você
evitar a todo custo o chulé.
Ao se estapear, seus braços em movimento estimulam a visão do inseto.
Os olhos dos mosquitos são compostos de centenas de lentes que não
conseguem focar uma imagem. Tudo o que o animal faz é fixá-las em um
ponto de luz e usá-lo como referência. Por esse motivo, pessoas com pele
clara – que refletem mais luz – são mais atacadas. Eles também fogem de
sombras ou objetos escuros, como a do chinelo que você pegou e com o
qual tenta pateticamente acertá-lo. O mosquito chega próximo o suficiente
da pessoa para sentir o calor do seu corpo e atacar a região mais quente:
onde há pele descoberta. “Ele reage automaticamente a estímulos como
calor, cheiro e pressão do ar”, diz Spielman. “É como se o mosquito pensasse
com a pele.”
O ataque é cirúrgico. Com duas lâminas, ele corta a pele da vítima e espalha
uma saliva com substâncias que inibem a reação do seu corpo para estancar
o sangramento. Em menos de 90 segundos, um mosquito consegue absorver
entre duas a três vezes o próprio peso em sangue. Logo em seguida,
arrasta-se até um lugar seguro. Lá, realiza um dos maiores feitos de digestão
do mundo animal: durante 45 minutos, elimina os líquidos do sangue sob
forma de urina – é verdade: mosquito faz xixi – e, depois disso, acumula
energia suficiente para pôr cerca de 240 ovos em águas paradas e sujas.
As larvas do Culex têm estratégias para escapar de predadores como
besouros e mariposas. Elas conseguem perceber a sombra desses animais
e afundar, camuflando-se no fundo da água. O mesmo não acontece com
outros mosquitos, como o Aedes aegypti, transmissor da dengue, que
precisa de lugares protegidos como buracos de árvore, pneus velhos ou
garrafas cheias de água.
Durante a refeição, o mosquito absorve não só o sangue, mas também
qualquer parasita que esteja nele, que pode se desenvolver dentro do
corpo do inseto. Ao picar uma pessoa com filariose, por exemplo,
também conhecida como elefantíase, ele absorve vermes ainda em
seus primeiros estágios. No estômago dele, os microorganismos abrem
caminho até os músculos das asas, onde começam a crescer. Dirigem-se
então para a cabeça, se instalam nas lâminas que furam a pele da vítima e
pronto: o verme se projeta na ferida e vai para os vasos linfáticos da presa,
onde pode crescer até ficar do tamanho do braço de um homem adulto.
Como em algumas pessoas o sistema imunológico reage acumulando líquidos,
braços, pernas e genitais incham até tomar proporções gigantescas.
Apesar de causar tanta destruição em animais grandes como nós, os
mosquitos, com seu tamanho insignificante, permanecem incólumes
às doenças que transmitem. Eles continuam picando outras pessoas,
espalhando a doença e até adquirindo novos parasitas, o que facilita
ainda mais a dispersão de epidemias. “Não há nada pior que um
mosquito velho”, diz Andrew Spielman.
Há 20 000 ou 30 000 anos, quando as sociedades humanas não passavam de
pequenas tribos isoladas, as epidemias tinham um impacto localizado: ou
dizimavam a população inteira ou davam imunidade (ao menos parcial) aos
que sobreviviam. Quando o homem começou a comerciar e a guerrear em
lugares distantes, viajantes que não tinham imunidade logo descobriram a
dureza que era sobreviver em terras estrangeiras. Durante o Império Romano,
por exemplo, qualquer estrangeiro que passasse o verão na Itália corria o risco
de ser contaminado pela malária. Os exércitos que tentavam cercar Roma
perdiam facilmente metade de seus homens para as doenças. As enfermidades
também podiam ser transportadas para lugares distantes. Os mesmos navios
que trouxeram os escravos da África para a América levaram os mosquitos que
Até o final do século XIX, ninguém acreditava que seres tão insignificantes
pudessem causar tanto estrago. Alguns exploradores associaram doenças como a
malária a lugares com água suja e parada. “Acreditava-se, na época, que esses
males eram provocados por ‘miasmas’, emanações ‘insalobras’ do solo e do ar”,
afirma o epidemiologista Arary da Cruz Tiriba, da Universidade Federal de
São Paulo. A palavra malária, por exemplo, vem da expressão italiana para
“mau ar”. Sem a menor idéia de como essas doenças poderiam ser controladas
, os europeus do século XIX não conseguiam dominar completamente o interior
de suas colônias africanas. Já os negros, que nasceram ali e desenvolveram
imunidade ao menos parcial, transitavam por lá sem nenhum problema. Ao
tentar achar um motivo para essas diferenças, os britânicos lançaram a hipótese
de que os cérebros europeus eram “mais delicados” e, por isso, sofriam com o
sol dos trópicos. Por esse motivo, começaram a utilizar os chapéus típicos de
exploradores britânicos.
Alguns suspeitavam que o contato com os negros poderia ter alguma influência
e construíram casas separadas, aumentando a segregação racial que dura até
hoje em várias ex-colônias.
Foi o médico cubano Carlos Finlay, em 1880, quem descobriu que os mosquitos
podiam transmitir doenças. Poucas pessoas levaram a hipótese a sério até 1900,
quando tropas americanas em Cuba sofreram diversas baixas devido à
febre amarela. Uma equipe chefiada pelo médico Walter Reed analisou
os casos da doença e conseguiu provas de que a teoria de Finlay estava
correta. A partir daí, os esforços se voltaram para combater os mosquitos,
o que não só eliminou a febre amarela da capital de Cuba como permitiu
que os americanos terminassem o Canal do Panamá, em 1914. A gigantesca
obra de engenharia que ligaria o Oceano Atlântico e o Pacífico havia sido
iniciada pelos franceses em 1881. Mas a malária e a febre amarela infectaram
30% da mão-de-obra tornando o projeto praticamente inviável. Os americanos
retomaram o trabalho e, com a ajuda de membros da equipe de Reed,
conseguiram reduzir esse número para 2%.
Apesar desse sucesso, muitas pessoas ainda acreditavam nos miasmas e
ridicularizavam os esforços públicos para combater os pequenos insetos
voadores. As primeiras evidências de que o combate ao mosquito era
realmente eficaz para eliminar doenças em um vasto território veio do Brasil.
O médico Oswaldo Cruz formou brigadas para combater os insetos e, mesmo
sob protestos da população, conseguiu erradicar, em 1907, a febre amarela
do Rio de Janeiro. Em 1940, o médico americano Fred Soper destruiu criadouros
e espalhou larvicidas e inseticidas para eliminar do Brasil o Anopheles gambiae,
o maior transmissor de malária do mundo. Logo em seguida, Soper foi mandado
para combater as doenças nos acampamentos da Segunda Guerra Mundial, onde
tornou-se o primeiro a verificar a eficácia de uma nova arma no combate aos
insetos, o dicloro-difenil-tricloroetano, mais conhecido como DDT. Esse inseticida
mostrou ser tão eficaz no combate aos insetos que logo passou a ser amplamente
utilizado em todo o mundo.
No entanto, descobriu-se depois que a substância também afetava peixes, aves
e outros animais além dos insetos. Para piorar, os mosquitos tornavam-se
resistentes à substância em poucos anos. Por esses motivos, o DDT foi banido
em quase todos os continentes.
Nenhum cientista de bom senso acredita que um dia chegaremos a eliminar em
definitivo os mosquitos. Eles são tantos e tão variados que é praticamente
impossível exterminá-los. Algumas espécies são capazes de voar a milhares de
metros de altura; outras são tão resistentes que chegam a sobreviver em locais
de temperaturas tão gélidas e secas quanto o ártico ou tão úmidas e quentes
quanto uma floresta tropical. Além disso, os cientistas ainda têm muitas
questões sem resposta em relação aos mosquitos. Não se sabe, por exemplo,
como eles distinguem o ser humano de outros animais, nem por que as
espécies transmitem determinadas doenças e são imunes a outras.
Há quem pensa alterar os mosquitos geneticamente para impedir que
transmitam doenças. Diversas equipes ao redor do mundo estão tentando
modificar a sua programação genética para criar variações que não possam
carregar parasitas. Se um grande número desses mosquitos modificados for
lançado no ambiente, é possível que os genes se espalhem por toda a população
desses animais e eles se tornem incapazes de fazer com que novas epidemias
se alastrem.
Por enquanto, as medidas de maior sucesso ainda são alguns inseticidas e a
destruição dos lugares em que eles se reproduzem. Até que uma solução
definitiva apareça, qualquer descuido pode ser fatal. Que o digam as mais
de 120 000 vítimas de dengue registradas no Estado do Rio de Janeiro até
o fechamento dessa edição.
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