Fernando Lugo, um ex-bispo relativamente moderado mas apoiado pela esquerda na
sua eleição, foi deposto do lugar de Presidente do Paraguai. Apesar de se terem
cumprido, formalmente, todos os requisitos legais, a deposição-relâmpago do presidente
eleito, em apenas 30 horas, por causa de 17 mortes num conflito entre a polícia e
sem-terra, foi considerada, na generalidade dos países latino-americanos, como um
golpe de Estado. E o novo governo tenta agora romper o quase completo isolamento
internacional.
A esquerda latino-americana (e não só) que pretenda transformar uma realidade social
injusta de forma mais radical está consciente de uma coisa: não tendo o apoio das
elites económicas e das elites políticas tradicionais, nunca lhe chega uma
vitória eleitoral. Independentemente do que se pense sobre cada um dos
presidentes eleitos, as tentativas de golpes de Estado na Venezuela e na Bolívia
e os golpes nas Honduras e, há mais de três décadas, no Chile, são um aviso
de que nunca se podem esquecer: aqueles que se lhes opõem não desistem de os
derrubar por todos os meios.
Mas não é apenas isto. As transformações a que se propõem exigem um apoio
popular organizado. São terrivelmente difíceis e para as conquistar não chega
deter um poder formal que será subvertido - como foi nas Honduras e no Paraguai -
à primeira oportunidade. Nem chega o carisma dos seus líderes. Não chega ser,
como Lugo era chamado antes das últimas eleições, "o bispo do povo". É preciso que
esse poder esteja apoiado numa forte base social, organizada e combativa. E para
ela existir são precisos resultados concretos.
Claro que Lugo, como Zelaya, Allende, Chavez ou Evo Morales, tiveram do seu lado,
ao contrário de Fidel e Raul Castro, a legitimidade do voto. Mas quem quer ir mais
longe tem de ter do seu lado a democracia em ação. E a democracia, pelo
menos para governos desta natureza, passa por iniciar a democratização real das
sociedades dos seus países.
Lugo caiu e não teve, nesse dia, mais de 500 pessoas a manifestar-se
por ele. Caiu e apenas 4 senadores votaram contra este golpe. Caiu e teve de
aceitar a sua queda sem resistência. Caiu e nem o partido que o apoiava, o Partido
Liberal Radical Autêntico, uma força tradicional paraguaia sem qualquer história de
combate social, esteve do seu lado. Isto porque a vitória de Lugo não resultou de um
movimento político estruturado e com implantação popular. Lugo venceu por
causa de Lugo. E Lugo não chega para defender Lugo.
Para vencer eleições e tudo ficar na mesma basta um homem que vença uma
eleição. O resto já lá estará, nas elites económicas e políticas, para o defender.
Para mudar um país um homem não chega. E esta, entre muitas outras, é a
razão porque desconfio de movimentos personalistas de esquerda, como, por
exemplo, o "chavismo". Há uma grande diferença entre um movimento social e
político e um movimento carismático. Um depende do poder que as pessoas
conquistam para si próprias, o outro depende do poder que um homem providencial
momentaneamente lhes ofereça. E o personalismo tem sido um dos maiores
pecados da esquerda latino-americana.
Fernando Lugo caiu por causa de um confronto entre as forças policiais e camponeses
sem-terra. Ou pelo menos esta foi a razão que a oposição, maioritariamente de direita
, apontou para a sua queda. A verdade é que, em quatro anos de poder, a
realidade agrária do Paraguai não mudou. 1% dos proprietários continua a deter
77% das terras - 351 proprietários detêm 9,7 milhões de hectares -, enquanto 40%
dos pequenos proprietários rurais, camponeses, tem apenas 1%. 350 mil famílias
rurais vivem em acampamentos de barracas.
Quando venceu as eleições, Lugo prometeu nacionalizar 8 milhões de hectares para
depois os distribuir entre as 300 mil famílias sem-terra. Não cumpriu e a situação até
piorou. Como muito bem escreveu o jornalista Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo,
"se Lugo alguma culpa tem nessa história, não é a de ter ordenado ou
provocado o incidente, mas o de não ter conseguido fazer a reforma
agrária que prometeu ao assumir em 2008". Assim como não conseguiu
inverter a situação relativa ao Tratado de Itaipu, assinado com o Brasil, que
permite ao Paraguai usar metade da energia produzida por aquela central eléctrica,
que garante 20% das necessidades energéticas do Brasil. Continua, tal como antes,
a usar apenas 5% (que garantem 95% das suas necessidades) e a vender o resto
a preço de custo.
Se tivesse feito a reforma agrária e mudado a política energética não teria contado
com a oposição que contou? Seria bem pior. Mas seguramente estariam, do seu lado,
bem mais do que 500 manifestantes. E sua destituição administrativa teria sido
bem mais difícil. É esta a lição: a quem queira governar pelos mais fracos é
indispensável o voto dos mais fracos. Mas ele não chega. Precisa do apoio
ativo e organizado dos mais fracos. Quem nada quer mudar pode desiludir
quem nele vota. É quase da natureza das coisas. Mas quem se prepara para um
combate tão difícil, como o de destruir as estruturas que garantem uma pornográfica
desigualdade, precisa de contar com o apoio comprometido dos destinatários das suas políticas.
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