quarta-feira, 9 de maio de 2012

Reflexões Desabusadas Sobre o Abuso do Poder Político


Em penosa conversa mantida, recentemente, com o Professor Celso Antônio Bandeira
 de Mello, manifestamos ambos uma profunda desilusão com o panorama político
 nacional. Os homens e os partidos, após crescerem moralmente na oposição pela
 contínua denúncia dos desmandos governamentais, assim que chegam ao poder
 reproduzem integralmente, ou quase, o comportamento de seus antigos adversários
, embora protestando, com a mão na Bíblia, sua firme intenção de doravante tudo
 mudar no trato da coisa pública. Concluímos o nosso desalentado colóquio,
 reconhecendo a urgente necessidade de uma reflexão menos episódica
 e emocional sobre a essência e os mecanismos de exercício do poder político.

Em homenagem à pessoa do mestre e amigo, venho agora cumprir a minha parte
, apresentando as reflexões que se seguem. Elas obedecem ao método ternário
, cuja boa qualidade tem sido largamente demonstrada na análise dos problemas
 sociais: ver, julgar e agir. Apresento, assim, numa primeira parte, o que se
 poderia denominar a fenomenologia do poder político, para lembrar, em
 seguida, os princípios ético-jurídicos fundamentais da política, e concluir com
 uma proposta de programa de ação.

I - A Fenomenologia do Poder Político


A - As suas diferentes manifestações


Não há realidade mais proteiforme que o poder. Hobbes, em passagem famosa
 do Leviatã (Parte I, capítulo 10), apontou algumas de suas várias manifestações:

“Reputação de poder é poder; pois ela atrai a adesão daqueles que precisam de
 proteção. Assim é a reputação que alguém tenha de ser amado pelos seus
 conterrâneos (a chamada popularidade), pela mesma razão. O mesmo acontece
 com a qualidade que faz com que um homem seja amado ou temido por muitos
; pois ela implica obter a assistência e o serviço de muitos.

Bom sucesso é poder; ele cria a reputação de sabedoria, ou de sorte; a qual suscita
o temor ou a confiança dos outros.

A afabilidade dos homens que já estão no poder o reforça, porque suscita a estima
 dos governados.

Reputação de prudência na condução da paz ou da guerra é poder; pois aos homens
 prudentes costumamos confiar o governo de nós mesmos, mais facilmente do que
 a outros.

Nobreza é poder, não em todos os países, mas naqueles em que ela confere
 privilégios; porque o poder consiste justamente em tais privilégios.

Eloqüência é poder; porque dá a impressão de prudência.

Forma (isto é, beleza) é poder; porque, sendo uma promessa do Bem,
 provoca a simpatia das mulheres e dos estrangeiros”.

Nem todas essas formas de poder, contudo, apresentam a mesma importância
 no plano político. Examinemos, portanto, com mais cuidado, algumas de suas
 principais manifestações.

Poder de mando e autoridade moral (“potestas” e “auctoritas”)

Essa distinção foi feita em Roma, para distinguir, de um lado, a posição política dos
 cônsules e outros magistrados, que podiam impor suas decisões ao povo
(potestas ou imperium), e, de outro, a posição do senado, cujas decisões eram
 respeitadas unicamente em razão do prestígio moral ligado à instituição (composta
dos descendentes presumidos dos fundadores de Roma), mesmo não tendo o senado
 poder algum para impor suas decisões ao povo. A constituição da república romana
, como salientou Políbio no Livro VI de sua História, era um misto de monarquia, 
oligarquia e democracia, o que dificultava em muito, na prática, o abuso de poder.
 Os cônsules exerciam funções de natureza monárquica; o senado organizava-se 
como instituição oligárquica, enquanto ao povo eram reservados certos poderes
 propriamente democráticos, como o de aprovar as leis propostas pelos cônsules
 e não vetadas pelo senado.

Nas instituições modernas, essa antiga distinção não foi oficialmente mantida, salvo
 em algumas monarquias, como a espanhola. Mas tudo depende, na prática, do
 efetivo prestígio moral dos agentes políticos, sejam eles ocupantes de cargo oficial 
ou não. Por exemplo, após a independência da Índia, Gandhi, embora não ocupasse
nenhum cargo oficial, gozou até a sua morte de uma autoridade moral incontestável.
 Nenhuma grande decisão governamental era tomada sem o acordo prévio do Mahatma.

O Datafolha, departamento de pesquisa do jornal Folha de S.Paulo, publicou
recentemente[1] os resultados de uma pesquisa de opinião realizada em todo o
 Brasil, para avaliar o que chamou “poder de influência” e “prestígio” de várias instituições
 nacionais. Apurou-se que, no tocante ao “poder de influência”, as três primeiras
 instituições eram, em ordem decrescente, a imprensa (provavelmente, o conjunto dos
 meios de comunicação de massa), a Presidência da República e as instituições
 financeiras; e as três últimas, os partidos políticos, as empresas estatais e os sindicatos
 de trabalhadores. Quanto ao “prestígio”, as instituições que mais se destacaram foram
a imprensa, os clubes de futebol e a Igreja Católica; e as de menor prestígio, as
 empresas estatais, a seguir o Congresso Nacional e os sindicatos de trabalhadores 
(no mesmo nível) e, finalmente, os partidos políticos.

Algumas conclusões podem ser tiradas dessa pesquisa.

Vê-se, assim, que o fato de dispor de poder oficial no plano político não significa
, necessariamente, gozar de prestígio ou respeito junto à opinião pública. Vou mais além
: o político enlouquecido pela paixão do poder, da qual trato mais abaixo, acaba preferindo
 manter as posições de mando já conquistadas, mesmo ao preço de enxovalhar para
 sempre a sua reputação pessoal.

De qualquer modo, em matéria política o prestígio (isto é, auctoritas) constitui uma forma
 especial de poder. É o que explica o fato de os governantes brasileiros sempre
 respeitarem e temerem a Igreja Católica.

FORÇA E PODER. PODER LEGÍTIMO E ILEGÍTIMO


No campo político, toda posição de força, derivada de qualquer causa - as armas ou
 a riqueza, por exemplo - é instável enquanto não legalizada, ou seja, não 
oficialmente reconhecida pelo sistema jurídico. “O mais forte”, advertiu Rousseau
 no Contrato Social, “não é nunca bastante forte para permanecer sempre no poder 
(pour être toujours le maître), se ele não transforma a sua força em direito e a obediência
 em dever”.

Daí a tendência universal de todos os mentores de golpes de Estado, ou líderes
 revolucionários, de procurar legalizar, desde logo, a posição de mando que
 conquistaram. Na América Latina, todo pronunciamiento sempre foi consagrado
 por uma imediata mudança constitucional.

Muitas vezes, porém, não basta ao governante ser titular de um poder constitucional
 ou legal para ser respeitado e obedecido. O desgaste pronunciado dos governantes
 junto ao povo enfraquece a sua posição de mando e pode conduzir à sua
 não-reeleição, ou, no limite, à sua destituição, pelos meios legais (impeachment, por exemplo).
Poder de estatuir ou decidir e poder de impedir

Essa distinção (pouvoir de statuer, pouvoir d’empêcher) foi feita por Montesquieu, ao
 analisar, no capítulo 6º do Livro XI do Espírito das Leis, a questão do abuso de
 poder, e ao propor a separação institucional dos órgãos do poder estatal. O exemplo
 por ele dado de poder impediente foi o dos tribunos, na Roma republicana. Ao contrário
 dos cônsules, eles não tinham competência para tomar decisões obrigatórias para o povo
, mas podiam vetá-las, o que representava eficaz prevenção à tentativa de abuso.

Em nosso sistema constitucional de governo, o poder impediente é atribuído, tanto ao
 Presidente da República, para vetar as leis aprovadas pelo órgão legislativo, quanto
 a este, para autorizar, por exemplo, a nomeação de membros dos altos tribunais
 do país, do presidente do Banco Central, dos embaixadores e outros altos funcionários
. Quanto ao Poder Judiciário, a sua função política precípua é a de exercer um
 poder impediente, pelo juízo de constitucionalidade e legalidade dos atos dos demais
 órgãos do Estado.

Cuida-se, agora, de institucionalizar, no quadro da democracia participativa, 
mecanismos de exercício do poder impediente pelo próprio povo.

PODER FORMAL E PODER REAL


Karl Marx salientou em vários escritos que, no Estado moderno, os governantes não
 passam de mandatários da burguesia, encarregados de gerir os negócios públicos de
 modo a favorecer os interesses dela, como classe dominante.

Marx teve o grande mérito de mostrar, pela primeira vez, o forte entrelaçamento, na
 sociedade moderna, do poder político oficial com o poder econômico privado. Mas
 as suas idéias, nessa matéria, representaram uma generalização da realidade política 
que ele conheceu na Europa Ocidental de meados do século XIX, na qual, efetivamente,
 pelo mecanismo do voto censitário, os homens de posses formavam a maioria do
 eleitorado. A partir da segunda metade do século XX, na generalidade dos países
 onde foi consagrado o sufrágio universal e onde as eleições não são dirigidas pelo
 aparelho estatal, os ricos e, em especial, os grandes empresários, constituem uma
 minoria ínfima do eleitorado. As eleições são, portanto, decididas pelo voto popular.
 Daí todo o empenho das classes dominantes em controlar os instrumentos
 de formação da opinião pública, notadamente os meios de comunicação de
 massa. Elas possuem, pois, uma influência preponderante, mas não um controle
 direto (no sentido forte do termo control em inglês) sobre o processo eleitoral. Esta é, pois, 
uma fraqueza do poder econômico privado, que deve ser aproveitada pelo povo.

Além disso, não se pode desconsiderar o fato de que alguns órgãos do Estado 
moderno, concentrados no Poder impropriamente dito Executivo, possuem um feixe
 de prerrogativas próprias (e não simplesmente delegadas) - como o poder de
 tributar, o de nomear ou contratar funcionários públicos, o de autorizar o exercício de
 certas atividades empresariais, o de comandar as forças armadas e as forças policiais, 
o de controlar as instituições oficiais de crédito - poderes esses suscetíveis de serem 
usados com sucesso contra as classes dominantes, durante um tempo mais ou menos
 longo, dependendo do grau de apoio popular de que disponha o Chefe de Estado, da
 coesão ou divisão existente entre as classes dominantes e da capacidade de intervenção
 de potências estrangeiras. O caso de Hugo Chávez, na Venezuela, representa uma boa
 ilustração do que acaba de ser dito.

B - A patologia do poder político


As doenças próprias do poder político são, na verdade, comuns às demais formas
 de poder. Lembremos as principais.

TENDÊNCIA À CONCENTRAÇÃO E À IRRESPONSABILIDADE


Ao contrário da energia física, sujeita à segunda lei da termodinâmica (entropia), ou seja, submetida a uma necessária e constante degradação em calor, o poder político tende sempre, pela sua própria natureza, à concentração, tanto sob o aspecto subjetivo, quanto objetivo. “É uma experiência eterna”, frisou Montesquieu, “que todo homem que detém poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude tem necessidade de limites”.[2] Os atuais Estados fundamentalistas, aliás, são uma perfeita ilustração dos perigos dessa idolatria sem limites da virtude.

A experiência eterna, de que nos fala Montesquieu, mostra que, de um lado, todo titular de uma posição de poder procura afastar os rivais, ou neutralizar os que detêm prerrogativas de controle (no sentido francês de fiscalização) sobre si, a fim de se tornar cada vez mais independente e poderoso. Nenhum político abre mão de uma milésima parte de sua competência, legal ou costumeira, a não ser quando coagido. É, portanto, inútil esperar que um órgão do Estado proponha alguma redução, ainda que em escala muito modesta, dos poderes que a Constituição lhe atribui.

De outro lado, todo aquele que tem poder em determinada área porfia sempre em estendê-lo a setores vizinhos, e a outros mais distantes, e assim indefinidamente. É muito raro que alguém no governo reconheça concentrar em suas mãos poderes demasiados. Mas, a todo momento, os Chefes de Executivo costumam se queixar, de público, de que outros órgãos do Estado (as Casas Legislativas, o Ministério Público, os juízes de primeira instância...) prejudicam a governabilidade, impedindo-os de exercer plenamente e com eficácia inerentes à sua competência constitucional. Há, por vezes, uma reclamação pessoal contra o excesso de trabalho. Mas esse problema, quando realmente existe, resolve-se, em geral, pela delegação de atribuições executivas a auxiliares imediatos, reservando-se, sempre, o governante o poder de retomá-las para si a qualquer momento.

Aliás, no sistema presidencial de governo, a tendência incoercível é de o Presidente da República se atribuir pessoalmente os êxitos alcançados pela ação dos seus Ministros, e de descarregar sobre eles, ou pelo menos sobre os mais fracos deles, a responsabilidade por todos os insucessos ocorridos ou os desmandos praticados, mesmo quando, nesta última hipótese, os Ministros tenham obedecido estritamente às ordens do Presidente.

Tudo isso alimenta, naturalmente, a incessante busca de uma posição de monárquica irresponsabilidade[3] pelos Chefes de Governo, ou de irrestrita imunidade penal por parte dos parlamentares. Eles se dizem escandalizados com o fato de que, havendo se decidido, segundo proclamam, a se consagrar integralmente ao bem público, ainda podem ser arrastados à barra dos tribunais como malfeitores vulgares. Em nenhuma de suas cabeças entrou, jamais, o princípio elementar do regime republicano de que quanto maior o poder, maior a responsabilidade.

TENDÊNCIA AO ISOLAMENTO DOS GOVERNANTES EM RELAÇÃO AOS GOVERNADOS


As estruturas políticas e burocráticas do Estado cercam e prendem os governantes num círculo quase hermético, que os isola do povo. Sem embargo de suas qualidades pessoais que, reconheça-se, não são raras, as pessoas no governo, do primeiro ao último escalão, acabam se tornando cegas e surdas (mas raramente mudas...), diante das efetivas exigências e necessidades do povo.

Além disso, submetidos à constante lisonja por parte dos seus auxiliares imediatos, os quais buscam deles se servir para seu exclusivo proveito pessoal (lembremo-nos do verso final da fábula de Lafontaine do corvo e a raposa: “tout flatteur vit au dépens de celui qui l’écoute”); fascinados pela eficácia das técnicas mais modernas de propaganda política, que seriam capazes, segundo se apregoa, de manipular com êxito a opinião pública em qualquer conjuntura política; mantidos, pela própria organização burocrática de suas funções, na ignorância das dificuldades e dos erros cometidos no exercício do governo - por força de todos esses fatores, os chefes do Poder Executivo acabam freqüentemente por se convencer de que são, de fato, superiores ao conjunto dos demais políticos, senão ao comum dos mortais; de que são, portanto, pessoas indispensáveis no cargo, porque as únicas capazes de resolver com sabedoria as questões de interesse público.

Ora, a essa convicção de auto-excelência, que costuma assoberbar os governantes, corresponde (e isto é fatal para o funcionamento do regime democrático), o sentimento de que o povo é uma massa fraca, inconstante e inepta; e, por conseguinte, perpetuamente carente de tutela, como um menor impúbere. Convém meditar, a esse propósito, sobre a lição contida na parábola do Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski.

Dostoievski imagina o confronto entre o cardeal Grande Inquisidor da Espanha e Jesus Cristo, que aparecera de repente em Sevilha, no século XVI, na manhã seguinte a um gigantesco auto-de-fé, em que foram queimados vivos cem hereges. O doce rabi da Galiléia insinuara-se mansamente na grande praça, e, apesar disso, o povo o reconhecera de imediato, sem que ele proferisse uma só palavra. Atendendo às súplicas da multidão, Jesus voltou a fazer os milagres que o celebrizaram na Palestina, quinze séculos antes: restituiu a visão a um cego e ressuscitou uma menina que era levada ao cemitério.

O Grande Inquisidor, que vira toda a cena de longe, ordenou a imediata prisão do “desordeiro”. À noite, no calabouço escuro onde fora jogado o Salvador do mundo, o cardeal nonagenário vem se explicar com o prisioneiro. Ele o censura amargamente pelo fato de haver recusado, quando da tentação no deserto (Mateus 4, 1-11; Lucas 4, 1-13), a dar aos homens aquilo que eles sempre almejaram do fundo do coração: o pão que mata a fome, a segurança da riqueza que dispensa o trabalho quotidiano e o governo de um príncipe todo poderoso, que tudo decide pelos seus súditos, e em quem estes podem depositar, cegamente, as suas esperanças.

O Grande Inquisidor reconhece que Jesus tomou essa decisão superior, digna de um deus, porque queria preservar a sagrada liberdade de escolha do gênero humano entre o bem e o mal. Mas isto foi um erro funesto, diz o prelado. Os homens, que não são deuses, mas, ao contrário, seres viciosos pela sua própria natureza, sempre consideraram a liberdade, em todos os tempos e lugares, um fardo excessivamente pesado para as suas débeis forças. A sua mais lancinante preocupação é de saber como, quando e em mãos de quem eles poderão, enfim, alienar sua liberdade, em troca daqueles bens que Jesus imprudentemente recusou ao tentador no deserto.

Na verdade, no mundo da política só se respeita quem detém alguma espécie de poder (oficial ou não, sob a forma de prestígio público ou de poder efetivo de mando; como atribuição de mandar ou de impedir). É conhecida a pergunta irônica de Stalin a Churchill e a Roosevelt na Conferência de Ialta, ao final da Segunda Guerra Mundial: “De quantas divisões dispõe, afinal, o Papa?”

Acontece que, no limite - e essa é a verdadeira tragédia -, todo governante corre o risco de ser dominado pelas estruturas de poder, e de passar, objetivamente, da condição de senhor à de escravo, ou seja, de alguém que já não se pertence e vive submetido, servilmente, às estruturas do poder cuja conquista tanto almejou.

E efetivamente, raros são os homens públicos que não se deixam escravizar pela “glória de mandar e a vã cobiça”, como denunciou o velho da praia do Restelo.[4]

A PAIXÃO DO PODER


É, seguramente, a maior de todas as paixões, mais potente que a paixão erótica, religiosa, ou argentária. É uma força capaz de superar as limitações biológicas e, até mesmo, de suplantar o amor materno, como o gênio de Shakespeare bem intuiu. Advertida pelo marido da profecia lançada pelas três feiticeiras de que ele seria rei, e sentindo que o temperamento do consorte é todo feito de ternura (“I fear thy nature; it is too full o’ the milk of human kindness), Lady Macbeth invoca os espíritos infernais para que eles mudem o seu sexo frágil, enchendo-a, da cabeça aos pés, da mais terrível crueldade: “unsex me here, and fill me, from the crown to the toe, top-full of direst cruelty”.[5] E a fim de sacudir os últimos escrúpulos de consciência do marido, ela lhe lança em rosto uma estupenda bravata: seria capaz de esmigalhar a cabeça do filho que amamenta, se isto fosse indispensável para cumprir o seu desígnio.[6]

Aliás, de acordo com as observações de alguns antropólogos, a atração avassaladora pelo poder é algo que partilhamos com os outros primatas superiores. E a razão é biológica. As relações de poder e submissão são comandadas pela parte mais primitiva do cérebro humano, a chamada zona límbica, que se encontra até mesmo nos répteis. Eis porque as relações sociais que envolvem comando e obediência tendem a escapar, por vezes, ao controle da razão.

O exercício do poder é, de fato, um tremendo desafio à nossa capacidade de autocontrole. Na peça Cynna de Corneille, o grande auto-elogio posto na boca de Augusto, imperador romano, é o declarar-se ele senhor do mundo e de si mesmo, em pé de igualdade. O dramaturgo tinha toda razão: ninguém é capaz de exercer grande poder sobre os outros, se não souber controlar ou racionalizar a sua paixão de mando.

É preciso atentar para o fato de que objeto da paixão é a posse, uso e gozo da posição de poder; não o “resultado do poder”, isto é, as obras ou transformações suscetíveis de serem realizadas pelo seu exercício. O fato de se conseguir dobrar as vontades alheias, e de suscitar o respeito, senão a veneração do povo, como se este se encontrasse diante de um ídolo religioso, provoca um gozo intenso e durável. Aliás, um dos mais importantes recursos de poder consiste em manter os governados em estado permanente de temor e adoração, dois sentimentos, como se sabe, característicos da submissão religiosa.

Como já foi repetidas vezes observado, a paixão pelo poder é intrinsecamente corruptora. Ela tende a corromper, tanto os que exercem o poder, quanto os que deles se aproximam. Há, sem dúvida, a corrupção mais vulgar, daquele que compra a consciência alheia, ou vende a sua. Mas há também uma forma muito mais elaborada, que frisa à loucura moral. É aquele orgulho ou insolência que os gregos denominavam hybris, sempre pronto a provocar audácias proibidas e a engendrar desastres, como adverte o coro na tragédia Agamenon, de Ésquilo. O indivíduo escravo dessa paixão tende a se servir, para alcançar seus fins, de todos os sentimentos altruístas que encontra disponíveis diante de si: o amor, a compaixão, a generosidade, a lealdade, o espírito de serviço, a solidariedade. Com desoladora freqüência, velhos amigos e grandes admiradores do governante, ou então pessoas respeitáveis na sociedade pela sua correção e sabedoria, são tentativamente usados em proveito próprio pelo homem no poder, sem nenhum escrúpulo. Como se diz com freqüência entre nós, em política a única coisa feia é perder a eleição.

O mais curioso é que essa loucura moral vem sempre acompanhada de uma sensação de euforia. “Tudo se passa”, observou Aristóteles,[7] “como se o poder conservasse sempre em boa saúde os seus detentores”. E, efetivamente, é quase impossível encontrar um político que sofra de depressão no exercício do poder.

Daí porque raros são os moralmente preparados para assumir posições de mando político. “O poder revela o homem”, sentenciou sinteticamente Aristóteles, na Ética a Nicômaco (1130 a, 2-3). “Pode-se conhecer bem a alma, os sentimentos, os princípios morais de um homem”, indaga o rei Creonte na tragédia Antígona de Sófocles, “se ele não se mostrou ainda no exercício do poder, governando e ditando leis?” Pois, como observou saborosamente o Padre Vieira, “não há coisa que mais mude os homens do que o descer e o subir, e o subir muito mais do que o descer”.

C - A chefia do Executivo no Brasil: uma longa tradição de abuso de poder


Rousseau bem advertira: a inclinação natural de todo aquele que detém o poder executivo por delegação popular é de se apropriar desse poder, cujo exercício lhe foi confiado. Não hesita em afirmar que, em todos os países, o governo age e conspira contra a soberania popular, da mesma forma que a vontade particular age e conspira incessantemente contra a volonté générale.[8]

Dificilmente encontraremos melhor exemplo de aplicação dessa regra geral do que em nosso país.

Com efeito, desde que iniciamos a nossa vida de nação independente, há um dado que permanece constante na realidade política, indiferente às sucessivas formas de organização constitucional que adotamos no correr dos tempos: todo poder estatal tende a concentrar-se no cargo de chefe de governo. Raymundo Faoro, em estudo já clássico,[9] enxerga nas origens do reino de Portugal, forjado que fora pelo rei, muito mais um chefe político do que um senhor feudal, a raiz primeira desse traço típico de nosso ethos político.

No longo panegírico que dedicou à memória do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez permitiu-se censurá-lo. Foi a propósito de uma Circular, pela qual Nabuco pai, então Ministro da Justiça, ditou regras de julgamento aos magistrados:

“É o traço saliente do nosso sistema político essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regímen. Nabuco, apesar de todo o antagonismo de muitas de suas idéias com esse sistema, principalmente em matéria de garantias individuais, e apesar da guerra que moveu à invasão francesa do contencioso administrativo, foi um dos fundadores da onipotência do governo, convertido em última instância dos poderes públicos”.[10]

De qualquer forma, no império, a centralização e personalização do mando encontravam uma certa justificativa no chamado Poder Moderador, que a Constituição de 1824 instituiu, sob a inspiração de Benjamin Constant.[11] Mas os redatores daquela Carta Política, assim como os seus mais insignes comentadores e intérpretes, não reproduziram com fidelidade a idéia original do pensador franco-suíço. Enquanto este sustentava que a chave de toda organização política é a distinção entre o poder ministerial e o poder do rei, a nossa Constituição imperial preferiu declarar, sutilmente, que “o Poder Moderador é a chave de toda a organização Política”, sem acentuar a sua necessária separação do Poder Executivo, exercido pelos ministros de Estado (art. 102). Para Benjamin Constant, o poder do chefe de Estado é neutro, isto é, simplesmente arbitral ou mediador, enquanto o dos ministros é ativo, no sentido de que eles não atuam como meros agentes delegados do chefe de Estado. Daí a diferença essencial, como ele frisou, entre a responsabilidade ministerial e a inviolabilidade do rei.

Entre nós, no entanto, o mais ilustre dos publicistas do império, José Antonio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente), não hesitou em afirmar que a prerrogativa conferida pelo art. 98 da Constituição de 1824 ao Imperador era “a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente, de todas as instituições fundamentais da nação”.[12] No mesmo diapasão, o Visconde de Uruguai, o primeiro grande cultor do direito administrativo entre nós, sustentou que “o Imperador não é o Poder Executivo, não constitui por si só o Poder Executivo. É simplesmente (sic) o Chefe do Poder Executivo”.[13] Analogamente, o Poder Judicial “é uma mola da máquina administrativa, mas não é a máquina”[14] [tal seria!]. Em conclusão, “a máxima - o Rei reina e não governa - é completamente vazia de sentido para nós, pela nossa Constituição”.[15] Ao que o Marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres) arrematou: “o Imperador reina, governa e administra”.

Com isto, estava aberto o caminho à inevitável absorção das funções governamentais pelo monarca, declarado constitucionalmente imune de toda responsabilidade, com a inevitável conseqüência do avassalamento permanente dos demais órgãos constitucionais.

O nosso parlamentarismo do século XIX, como todos reconhecem, sempre foi uma ficção retórica. O velho Nabuco de Araújo, em famoso discurso pronunciado no Senado em 17 de julho de 1868, logo após o Imperador despedir inopinadamente o Gabinete Zacarias de Góis, desnudou-a sob a forma de um sorites, ou silogismo encadeado:

“O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país!”[16]

Instituído o regime republicano, essa concentração abusiva de poderes, de direito e de fato, na pessoa do chefe de Estado não retrocedeu; pelo contrário.

Os primeiros governos presidenciais não passaram de ditaduras militares, sob a justificativa ideológica do positivismo comteano. Imaginava-se que o sistema federativo viesse quebrar, de algum modo, a onipotência do Presidente da República. Mas a solerte “política dos Governadores”, instituída por Campos Sales, afastou desde logo qualquer ilusão a esse respeito. Os Governadores - na verdade, apenas dois, de São Paulo e Minas Gerais - faziam o Presidente, e este os apoiava em retorno, na reprodução, em plano federal, do esquema coronelista instituído em cada Estado.[17]

Discursando no Instituto dos Advogados, ao tomar posse no cargo de Presidente desse sodalício em 19 de novembro de 1914, Rui Barbosa não usou meias palavras para qualificar o sistema de governo instaurado com o regime republicano. “O presidencialismo brasileiro”, disse ele, “não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo”.[18] Vinte anos depois, um diplomata inglês, que aqui vivera durante um quarto de século, corroborou essa análise sem concessões do nosso sistema de governo, ao publicar um opúsculo com título sugestivo: “Sua Majestade o Presidente do Brasil”.[19] A ousadia valeu-lhe a imediata expulsão do território nacional.

O fato é que, após os dois períodos de governo de exceção, chefiados por Getúlio Vargas - antes e depois da Constituição de 1934 - e após os vinte anos de regime militar, tínhamos ingenuamente a esperança de que, advindo a reconstitucionalização do País, o nosso sistema político se encaminhasse, afinal, para um estado de maior equilíbrio de poderes.

Pura ilusão! O mecanismo de representação popular criado pelo Código Eleitoral de 1932 - sistema único no mundo, ao combinar eleição proporcional com voto uninominal - revelou-se uma eficiente máquina de triturar partidos, para melhor submetê-los à dominação governamental. Não havia nisto, aliás, nada de novo. A atuação partidária sempre foi, em nossa história política, um teatro de fantoches. Por ocasião da crise provocada no Partido Conservador de São Paulo, em 1851, com a imposição palaciana da candidatura de Pimenta Bueno ao Senado, contra a vontade unânime dos dirigentes partidários locais, o então Visconde de Monte Alegre, Presidente do Conselho de Ministros, definiu de forma impecável a realidade que perdura até hoje:

“Os partidos em nossa terra não podem coisa alguma contra a vontade do governo, e só a fraqueza do poder e a pouca vontade de os sujeitar à disciplina é que traz as derrotas, quando as tem havido”.[20]

Que o digam os dissidentes do Partido dos Trabalhadores, no primeiro ano do Governo Lula!

Além de apreciáveis poderes administrativos - de nomear ou contratar funcionários, de liberar verbas orçamentárias, de usar as instituições financeiras oficiais para direcionar o crédito estatal para as empresas ou setores que bem entender - o Presidente da República detém, em suas mãos, o poder legislativo, pela via das medidas provisórias, como, até mesmo, o poder de reforma constitucional. Até fins de 2003, ou seja, em quinze anos de vigência, a Constituição de 1988 foi remendada 46 (quarenta e seis) vezes - o que dá uma apreciável média de mais de três mudanças por ano - sempre por iniciativa direta, ou com o consentimento expresso, do chefe do Poder Executivo.

A par disso, permanece a mesma subserviência do Congresso Nacional às determinações do Presidente da República. A eleição dos presidentes das duas Casas Legislativas é rigorosamente controlada por ele. Demais, continuamos a assistir, impotentes, à mesma negociação indecorosa de liberação de verbas orçamentárias, quando não ao suborno puro e simples de parlamentares, no interesse privado do governo, como se tem visto com lamentável freqüência ultimamente, ao se impedir a instalação de comissões parlamentares de inquérito sobre atos de corrupção na esfera do Executivo.

Tudo isso, sem se falar na capacidade, ainda existente, dos Chefes de Executivo, na União e nos Estados, para avassalar o Judiciário e o Ministério Público.

Perante essa situação de lamentável ruína dos mecanismos institucionais de controle do poder entre nós, parece óbvia e urgente a necessidade de se elaborar um programa de regeneração política. Para tanto, devemos nos fundar nos princípios ético-jurídicos fundamentais, e combinar as instituições da democracia participativa com uma ampliação do sistema de separação de poderes.

É o que procuro esboçar a seguir.

II - Os Princípios Ético-Jurídicos de Organização do Poder Político


Devemos partir do postulado de que o poder é mero instrumento para a consecução de determinadas finalidades, cuja determinação é matéria de ética e não de técnica.

Ora, eticamente, o poder político é submetido, conjuntamente, aos princípios de ordem republicana e democrática, os quais nada mais representam, na verdade, do que uma especificação dos grandes princípios dos direitos humanos, todos eles inscritos em nossa Constituição. Até hoje, porém, não obstante o grande progresso da teoria constitucional nos últimos decênios, continuamos a pensar que as grandes políticas públicas, aquelas que empenham as futuras gerações de brasileiros e a própria soberania nacional, devem ser tecnicamente imunes ao juízo de constitucionalidade.[21]

A ÉTICA REPUBLICANA


Ela pode ser sintetizada na supremacia do bem comum sobre o interesse particular.

O bem comum é aquele que pertence a todos, em igualdade de condições. Comum, aí, opõe-se a próprio, assim como a comunhão opõe-se à propriedade. A essência do bem comum é, portanto, a idéia de inclusão e partilha; ao passo que a propriedade implica, necessariamente, a exclusão de todos os que não são titulares dela. Nas comunidades, a relação que se estabelece é sempre de natureza pessoal e igualitária: todos são companheiros, no sentido fraterno que a palavra tem, sob o aspecto etimológico: cum panis. É a reunião dos que partilham o mesmo pão. A relação de propriedade, ao contrário, tem por objeto não pessoas, mas coisas, das quais o proprietário pode livremente usar, fruir e dispor. Daí porque tomar a propriedade como fundamento da ordem social, como faz a ideologia liberal-capitalista, redunda, não somente em exacerbar o individualismo excludente (a supremacia do mais forte e do mais rico), como também em estimular a utilização de pessoas como coisas, ou simples meios para a satisfação dos interesses do proprietário. Na análise marxista da sociedade capitalista, como sabido, tem grande importância o conceito de mercadoria: a burguesia, à semelhança do lendário rei Midas, transforma em objetos sujeitos à lei do mercado tudo aquilo em que toca.

De onde se conclui, irrefutavelmente, que o sistema capitalista é de todo incompatível com a observância da ética republicana, pois ele tende, pela sua própria lógica, à exclusão social dos não-proprietários, bem como à transformação dos trabalhadores e dos consumidores em mercadorias, que têm preço, mas não dignidade.

Note-se a extrema abrangência da noção de bem comum. Ela diz respeito não só ao povo, em relação aos indivíduos, grupos ou classes que o compõem, como também à nação, enquanto entidade permanente, em relação aos interesses particulares do povo atual, e, finalmente, à humanidade como um todo, em relação a cada nação em particular. Ninguém tem o direito de sacrificar o todo em benefício da parte, ou as gerações futuras para favorecer a geração presente, como tem ocorrido presentemente, em matéria de preservação do meio ambiente. Por outro lado, deve-se advertir que o Estado nem sempre age no interesse público, entendido este no seu preciso sentido etimológico (publicus, -a, -um, em latim, significa do povo). Como Marx salientou, os órgãos estatais não raro favorecem os interesses particulares das classes dominantes, em detrimento das classes dominadas. O que a análise marxista, porém, deixou na sombra, mas foi depois recuperado por Max Weber, entre outros, é que existe, sim, um interesse particular dos órgãos estatais, de índole corporativa ou burocrática, em oposição ao interesse comum do povo. Atualmente, por exemplo, sob a influência preponderante da ideologia neoliberal, a máquina estatal é levada a trabalhar, no mundo todo, no sentido de transformar as finanças, de atividade-meio em pura atividade-fim, como se o Estado existisse não para garantir o desenvolvimento nacional e a realização dos direitos humanos, mas sim para arrecadar tributos e manter o serviço da dívida.

No plano pessoal, a ética republicana exige que os governantes não transformem o Estado no seu domínio particular, pela sobreposição dos seus sentimentos ao interesse público, quer favorecendo indevidamente amigos e parentes, quer prejudicando os inimigos, ou preterindo os desafetos, embora altamente competentes, na ocupação dos cargos administrativos. Até hoje continua em vigor, entre nós, a máxima cunhada no período da “República Velha”: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”.

A ÉTICA DEMOCRÁTICA


Ela se funda no princípio de que o poder político pertence ao povo, sendo os governantes simples mandatários, sempre obrigados a prestar contas ao mandante de seus atos e omissões, e sujeitos à responsabilidade pessoal pelos desmandos que tenham praticado.

Nas democracias modernas de índole exclusivamente representativa, porém, os governantes tendem a considerar o poder como um bem próprio, e transformam a representação política em representação teatral: eles encenam, perante o povo, a farsa da estrita obediência à vontade eleitoral. As eleições, aliás, mui raramente exprimem a vontade popular por programas de governo. Elas constituem, no mais das vezes, a consagração de personalismos. É, portanto, ridículo ouvir governantes afirmarem, com toda a seriedade, que as políticas públicas por eles implementadas foram aceitas previamente pelo povo que os elegeu.

Nessa linha de raciocínio, é preciso reconhecer que o capitalismo é também incompatível com a ética democrática. A sua índole é essencialmente oligárquica: é o governo da minoria que, concentrando o poder econômico sob a forma de capital, dita o modo de vida de todos os outros agentes econômicos, de acordo com a lógica da máxima lucratividade. Para a classe empresarial, seria um desastre submeter as políticas econômicas de governo à vontade do povo, sem poder negociar em particular com os seus representantes, no governo ou no parlamento. O seu modelo de “democracia” é o funcionamento das sociedades por ações, nas quais finge-se que o poder soberano pertence aos acionistas (o povo), recebidos periodicamente na sede social para as festivas reuniões da assembléia geral, sendo de notório conhecimento que todas as decisões desta já foram previamente tomadas pelos controladores (a classe dominante), e que elas serão em seguida implementadas pelos administradores (o governo), sob sua imediata supervisão.

OS PRINCÍPIOS CARDEAIS DOS DIREITOS HUMANOS


Eles formam a tríade sagrada da igualdade, da liberdade e da solidariedade, e se concretizam nas determinações constantes dos sistemas nacional e internacional de direitos humanos. Não existe superioridade de um desses sistemas sobre o outro. Eles se harmonizam entre si, segundo o critério da prevalência, na hipótese de conflito, da norma de maior proteção da dignidade humana.

Toda a evolução histórica dos direitos humanos, desde as suas primeiras formas embrionárias na democracia ateniense e na república romana, até os últimos tratados internacionais, como o que criou em 1998 o Tribunal Penal Internacional, segue uma linha diretriz bem marcada: a eliminação do abuso de poder, tanto político, quanto econômico ou social.

A plena realização dos direitos humanos no território nacional deveria, portanto, ser o ponto mais importante do programa de qualquer governo.

À luz desse mandamento supremo de ética política, é totalmente inadmissível sacrificar direitos fundamentais (o direito ao trabalho, à educação, à saúde, ou à previdência, por exemplo), para arrumar as finanças do Estado (“pôr a casa em ordem”); o que significa, na prática, manter intocáveis os direitos dos detentores do capital, ou dos títulos da dívida pública. A verdade é que, em nosso País, hoje mais do que nunca, os programas e planos de governo são decididos, em última instância, não pelo Presidente da República ou o Congresso Nacional, mas sim pelo Secretário do Tesouro Nacional. É ele que determina, pela liberação ou o corte de verbas orçamentárias, o que pode e o que não pode ser realizado como “política pública”.

III - Um Programa de Ação


A - No plano educacional e da ação política


Montesquieu ressaltou, com toda a razão, a íntima ligação entre os regimes políticos e os sistemas de educação do povo. É que cada regime político orienta-se por valores próprios, que representam o seu princípio de funcionamento, valores esses que somente penetram fundo na consciência dos cidadãos, por força do empenho educacional. Ele também insistiu em que é o regime republicano, cujo princípio é a virtude política, isto é, a firme adesão de todos ao respeito do bem comum, aquele no qual a educação pública é mais necessária.[22]

Ora, entre nós, uma das carências mais sentidas e tradicionais do nosso sistema de ensino diz respeito à formação do espírito cívico, ou seja, a educação para o exercício da cidadania. Já o nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador, advertia, no longínquo ano de 1627, que “nem um homem nesta terra é republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

A Constituição Federal, em seu art. 39, § 2º, determinou que todas as unidades da federação criassem Escolas de Governo, “para a formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos”. Mas o mandamento constitucional, mesmo com essa limitação do seu escopo à administração pública, ainda é letra morta. Na verdade, esse dispositivo constou da emenda constitucional nº 19 por proposta do então Ministro da Reforma Administrativa, que se inspirou, para tanto, na experiência das escolas de governo e cidadania, criadas, primeiro em São Paulo e depois em várias outras unidades da federação, pela iniciativa de alguns professores universitários. Tais instituições educacionais visam a formar os cidadãos, não só para o exercício de funções políticas e administrativas no aparelho estatal, mas também e principalmente para fiscalizar a atuação dos agentes públicos e denunciar os abusos do poder.

Convém, aliás, salientar que não é de hoje, mas de sempre, a tendência aparentemente incoercível dos homens, de se considerarem perfeitamente aptos a exercer, sem a menor preparação, as mais diferentes responsabilidades no campo político. Foi esse, como sabido, o leitmotiv da filosofia política de Platão. No Alcibíades, por exemplo, Sócrates observa que, enquanto todos são capazes de prontamente reconhecer a sua inabilidade no exercício de alguma profissão técnica - construir navios, levantar fortificações, tocar algum instrumento musical (são exemplos por ele dados) - quase ninguém se enxerga ignorante na complexíssima arte de governar a polis, a qual exige não um conhecimento técnico, mas eminentemente ético: saber distinguir o justo do injusto. Ora, conclui ele, a pior ignorância, porque de extrema periculosidade social, é a auto-ignorância em matéria política: a situação daquele que não sabe que ignora os rudimentos da ciência prática de governo, e que, não obstante, está sempre pleiteando cargos ou funções públicas.

De qualquer maneira, porém, o exercício das prerrogativas inerentes à condição de cidadão exige um mínimo de organização do povo, como titular da soberania. Sem dúvida, aos partidos políticos, quando autênticos órgãos de representação popular e não simples máquinas eleitorais, incumbe essa tarefa de organizar a vontade política do povo. Mas não se deve nunca esquecer que os partidos são agentes políticos, cuja vocação natural é o exercício do poder no Estado.

Em ambiente de democracia direta e cidadania ativa, é indispensável criar outros mecanismos coletivos de ação política do povo. Seria, assim, segundo penso, da maior importância que lográssemos federar num consórcio de âmbito nacional todas as organizações não governamentais já existentes, cujo objetivo é o controle da atuação dos agentes públicos, em qualquer órgão do Estado. Isto viria potencializar a sua capacidade de agir politicamente em defesa do respeito aos objetivos e princípios fundamentais da República.

B - No plano institucional


Devemos lutar pelo aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais de controle do poder. Por mais importante que seja a atuação educacional, ela não dispensa a criação de freios objetivos às práticas abusivas dos governantes.

Ora, o controle (no sentido de fiscalização, impedimento e responsabilidade) do poder político deve atuar, tanto no sentido horizontal (separação de Poderes), quanto no vertical (relação entre governantes e governados).

A matéria é vastíssima. Limitar-me-ei, portanto, a apresentar, sumariamente, uma lista não exaustiva de sugestões para uma verdadeira e séria reforma política.

SUGESTÕES DE CONTROLE VERTICAL


· Submeter toda e qualquer emenda constitucional, uma vez aprovada no Congresso, ao referendo popular. Como enfatizou Sieyès em obra famosa,[23] “em cada uma de suas partes, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar coisa alguma nas condições de sua delegação”.

· Suprimir da competência exclusiva do Congresso Nacional o poder de autorizar referendo e convocar plebiscito (art. 49 - XV da Constituição Federal). A autorização e a convocação devem ser feitas pela Justiça Eleitoral, uma vez cumpridos os requisitos a serem fixados pela Constituição de maneira razoável, a fim de facilitar e não dificultar essas manifestações da soberania popular ativa.

· Suprimir a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, criada pela emenda constitucional nº 3, de 17 de março de 1993. Trata-se de manifesta no sistema tradicional de judicial control, criado pelos norte-americanos. A ação em questão não é uma defesa da cidadania contra o abuso governamental, mas, bem ao contrário, uma proteção antecipada do governo contra as demandas que os cidadãos possam ajuizar para defesa de seus direitos.

· Tornar obrigatória a participação popular na elaboração do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias, na União e nos Estados. Nos Municípios e no Distrito Federal, essa participação ativa do povo deve estender-se também ao orçamento anual.

· Instituir o recall de Chefes de Executivo e a dissolução, pelo voto popular, das Câmaras Legislativas, na segunda metade do mandato ou da legislatura. No caso dos Chefes de Executivo, o início do processo por crime de responsabilidade, no órgão legislativo, deveria ensejar a convocação do povo, mesmo na primeira metade do mandato ou da legislatura, para exercer, se assim o desejar, esse poder de destituição ou dissolução.

· Dar legitimidade a associações civis e a fundações, para a propositura de ações populares, inclusive de caráter penal,[24] e de ações de improbidade administrativa contra os agentes públicos.

· Instituir o financiamento público das campanhas eleitorais, com a cominação de severas penas aos candidatos que receberem dinheiro de particulares, ou que despenderem acima do limite máximo fixado em lei.

· Rever a legislação concernente aos meios de comunicação de massa, de modo a evitar que eles sejam utilizados contra o interesse nacional, ou em prejuízo do direito fundamental do povo a ser corretamente informado sobre assuntos de interesse público, e do direito de controlar o exercício do poder, sob todas as suas formas. Nesse sentido, o primeiro passo é, sem dúvida, a revogação da emenda constitucional nº 36, de 28 de maio de 2002, que abriu, pela primeira vez entre nós, a possibilidade de estrangeiros controlarem órgãos de imprensa, rádio e televisão. Dever-se-ia introduzir no Brasil o “direito de antena”, já previsto nas Constituições espanhola e portuguesa: é o direito de quaisquer entidades privadas a se servirem do rádio e da televisão para a transmissão de suas mensagens ao público.

SUGESTÕES DE CONTROLE HORIZONTAL


· Separar em órgãos distintos, no Congresso Nacional, o poder de legislar do poder de fiscalizar e autorizar. Com isto, eliminar-se-iam todos os obstáculos institucionais ao exercício da competência fiscal do parlamento sobre os demais Poderes. A maioria parlamentar perderia o poder de impedir a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito.

· Criar um órgão autônomo de planejamento, incumbido de elaborar os orçamentos-programas e os planos plurianuais de investimento, a serem aprovados pelo órgão legislativo, bem como de fiscalizar a sua execução. O objetivo é separar o longo prazo do curto prazo, de modo a evitar que os grandes investimentos de infra-estrutura e as políticas estruturais sejam sacrificadas ao interesse conjuntural ou eleitoral dos governantes.

· Alterar a disciplina dos orçamentos anuais. De um lado, tornar obrigatórias as despesas públicas aprovadas, salvo autorização prévia dada ao Governo, em cada caso, pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional. De outro lado, limitar as emendas que os parlamentares façam à proposta orçamentária, unicamente, à alteração de rubricas gerais, de modo a afastar as barganhas individuais entre o Executivo e os parlamentares (liberação de verbas em troca de votos).

· Proibir toda e qualquer despesa pública com propaganda governamental, inclusive as despesas com “publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos”, permitida pelo art. 37, § 1º da Constituição Federal, quando tenham “caráter educativo, informativo ou de orientação social”. A experiência tem demonstrado, fartamente, que essa norma constitucional é fraudada por todos os governos, sem exceção.

· Dar maior independência ao Judiciário e ao Ministério Público, em relação ao Poder Executivo. As nomeações para cargos, nesses órgãos, não deveriam ser feitas pelo Chefe de Governo. É preciso, também, dar-lhes maior autonomia financeira: a fixação de limites de despesas orçamentárias no Judiciário e no Ministério Público, feita pela mal denominada “Lei de Responsabilidade Fiscal” (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000), atenta claramente contra o princípio constitucional de separação de Poderes. Se o Judiciário e o Ministério Público são, pela Constituição, criados como órgãos independentes, não cabe ao legislador reduzir as suas prerrogativas.

· Instituir mecanismos de controle público (não estatal) do Judiciário e do Ministério Público.

· Tornar os Tribunais de Contas órgãos do Poder Judiciário. Em recente reportagem de imprensa,[25] apontou-se o fato de que, dos 189 membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, 33 respondem a processos junto ao Superior Tribunal de Justiça, pela prática de crimes de malversação dos dinheiros públicos.

Dixi et salvavi animam meam.

Concluído em São Paulo, em 18 de fevereiro de 2004.

[1] Edição de 4 de janeiro de 2004.

[2] Do Espírito das Leis, Livre XI, capítulo 4º.

[3] O art. 99 da nossa Constituição Política do Império, de 1824, assim dispunha: “A Pessoa do Imperador é ínviolável, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.

[4] Os Lusíadas, canto IV, estrofe XCIV.

[5] Macbeth, ato primeiro, cena 5.

[6] Idem, ato primeiro, cena 7.

[7] Políica, 1279 a, 15.

[8] Do Contrato Social, livro terceiro, capítulo X.

[9] Os Donos do Poder - Formação do Patronato Político Brasileiro, 2ª ed., t. 1, Editora Globo/Editora da Universidade de São Paulo, capítulo 1º.

[10] Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1975, pág. 239.

[11] Cf. Principes de Politique, capítulo II, in Oeuvres, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, pp. 1112 e ss.

[12] Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, p. 201.

[13] Ensaio sobre o Direito Administrativo, t. II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862, p. 55.

[14] Mesma obra, p. 261.

[15] Ibidem, p. 157.

[16] Joaquim Nabuco, op. cit., p. 663.

[17] O estudo de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja 1ª edição é de 1949, ainda é a obra de maior autoridade sobre o assunto..

[18] Obras Completas, Ministério da Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, vol. XLI 1914, tomo IV, p. 233.

[19] Ernst Hambloch, Sua Majestade o Presidente do Brasil - Um Estudo do Brasil Constitucional (1889-1934), Editora Universidade de Brasília.

[20] Joaquim Nabuco, op. cit., p. 129.

[21] Procurei, há alguns anos, num artigo composto em homenagem à memória do querido amigo, Professor Geraldo Ataliba, reagir contra isto. Mas não tive sucesso. Cf. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, Revista dos Tribunais 737/11.

[22] Do Espírito das Leis, livro IV, capítulo 5º.

[23] Qu’est-ce que le Tiers État?, capítulo V.

[24] A Carta Política do Império admitia que “por suborno, peita, peculato e concussão”, pudesse ser intentada contra os juízes ação popular, “pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo” (art. 157).

[25] CartaCapital, de 21 de janeiro de 2004.

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